Mesmo assim vou vivendo

Em muito já dobrei a serra.

Atingi a idade da razão e da simplicidade. Não pretendo vôos maiores. Contento-me correr ao rés do chão.

A saúde tenho a dar e emprestar. A clarividência me acompanha sempre até na presente data.

A inspiração, felizmente, me acorda a cada manhã. Editei mais de vinte livros. Embora a maioria ainda repouse na minha estante não tenho a pretensão de me candidatar a nenhuma academia a não ser aquela onde me exercito ao cair das tardes.

Vou vivendo a mercê das chuvas me escondendo das tempestades tempestuosas. Pois ainda quero viver por muitos anos ainda. E não desejo ser encontrado soterrado senão numa montanha de livros. Ler me atrai. Escrever mais ainda.

Já um compadre amigo. De nome pra muitos desconhecido. Pra mim ele não passa de um João qualquer. Mas bem que poderia ser Manoel ou Sotero das tantas e quantas quiserem.

Sempre o encontro assentado à soleira de sua porta. Não importa se chove ou castigue o sol, ele sempre está ali. De cócoras. Meio amuado. Contrariado e contrito. Queixando-se da vida bandida que tem levado.

A infância do meu amigo já se desenhou na bruma do tempo perdido.

Ele agora conta com quase noventa anos. Se vai aos cem ele não conta pra ninguém.

João se considera quase um morto vivo. Só falta fecharem-lhe os olhos. Lacrarem o mesmo num caixão para que ele seja tido um defunto de verdade.

Também pudera!

Ele já passou por tormentas, procelas e tempestades na sua vida errática.

Aos dez sofreu de paralisia infantil. Teve seus membros atrofiados. Só se locomove, quando se move, em cadeiras de rodas. Carece sempre de um acompanhante em suas necessidades diárias.

João é um exemplo vivo, se bem que desejaria estar morto, do que seja sofrer.

Aos vinte começou a lhe aparecer uma dor de causa ignorada. E que dor doida era aquela que não respeitava a hora de doer.

Mas não pararam por aí as desventuras da aventura da vida do infeliz João.  Aos trinta caiu da lotação. Fraturou a única perna boa que tinha já que a segunda não prestava.  Teve a bacia quebrada em cacos. Ficou internado por um ano inteiro no hospital de inválidos.

Lá pegou uma pneumonia que quase o levou ao cemitério. Teve alta sem ainda ter condições de tal.

Aos cinquenta mais uma centena de doenças nele se aboletou. Varíola, varicela, caxumba e outras danações nele pediram carona.

João era um compêndio inteiro onde estudantes de medicina podiam aprender a arte de curar.

Aos sessenta mal podia se assentar. Pra azar maior de sua pessoa um furúnculo se instalou no seu traseiro magro. Era osso ringindo sobre ossada pura. Mais uma dor a ser vencida, mas ela acabou por vencer o pobre João.

Foi num sábado de tarde que passei pelo compadre.

Ele era a mais pura expressão do desalento. Olhos encovados de onde mal se viam a cor.

Embora sabedor de seu infortúnio perguntei como ele se sentia.

Dele ouvi o que já previa.

“Mesmo assim vou vivendo. Se isso pode ser chamado vida”.

 

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