Antes, nos bons tempos que lá se vão, eu menino, criança ainda, brincava com alguns moleques. Uns branquinhos como paina de algodão. Outros como tições de fogo apagados. Negrinhos como noites escuras. Tais e quais jabuticabas bem maduras. Em ponto de subir no pé e ir chupando uma a uma. Sem medo de despencar lá de cima. Moleques travessos como éramos. Naquela idade em que tudo era ilusão.
Pena que hoje os tempos são outros. Bem mudados e pra pior.
Não nos deixam brincar nas ruas. Por medo de sermos atropelados. E assaltos acontecem à luz do dia. De revolver em punho. Empunhando armas bandidos se mostram desmascarados. Ai que saudade dos pierrôs e colombinas que se amavam de verdade nos salões.
Chamar alguém de preto não era um acinte. Neguinho então era um encômio.
“Vem brincar comigo seu monte de piche! Da outra vez você faltou seu jabuticaba. Sua mancha negra que nem asfalto.”
Ainda nem nos passava pela cabeça que chamar alguém de preto teria consequências desastrosas. Seriamos imputados de criminosos com penas a serem cumpridas numa cela escura.
E nem tínhamos consciência da impropriedade de tamanho delito.
Nem sabia que meus amiguinhos da Costa Pereira de que cor seriam.
Eram como nós. Caso não identificasse o Dida do Liço tanto faz como tanto se desfez.
Pra mim o excesso de melanina que cobre as suas peles não me importavam. O mesmo sorriso branco enfeitava-lhes a boca quando ela se abria naquele sorrisão zombeteiro que iluminava a nossa rua nas noites escuras.
Eles, se brancos ou negros, a mim não fazia diferença. Éramos amigos de verdade independente de suas cores.
Nunca, naqueles idos anos, que me lembre ninguém era acusado de racismo. Palavrão que quase não era pronunciado. Se constava no dicionário não era o mesmo que estabelece uma visão de hierarquia entre classes.
Entre nós, de epiderme escura e os de pele clara não existia uma barreira intransponível que nos apartasse. Tínhamos consciência da igualdade entre raças. Embora aqueles de pelagem negra fossem díspares da gente de pele clarinha entre nós não existiam distinções nenhuma.
E brincávamos na rua de pés descalços sem medo de sermos felizes.
Era um pretinho e outro branquinho cada um do seu lado. Em travessuras que terminavam quando nossos pais nos chamavam para fazer o dever de casa.
E não fazíamos distinção entre o Dida, escurinho como Saci Pererê, sem aquela toca vermelha. Equilibrando-se em duas pernas. E euzinho, serelepe meninozinho, perna de pau, correndo atrás daquela bola de capotão meio murcha. Naquele campinho cambeta. Tentando acertar a pelota redonda naquela trave improvisada feita com o bambu retirado do varal da casa da dona Dorotéia. Aquela veia mais feia que urubu zaroio.
Era um preto e eu branco. Mas nossas almas eram coloridas na mesma cor desbotada da pureza de nossa infância.
Ontem foi celebrado o dia da consciência negra.
Pena que as coisas mudaram tanto. Não se pode chamar ninguém de preto. Sob a pena de sermos taxados de racistas.
Mas, eu me pergunto: existe uma data em que se celebra o dia da consciência branca?
Tenho a minha em paz. Pois nunca considerei meus amigos. Desde aqueles velhos tempos da Costa Pereira. Até nos dias de agora. Não faço nenhuma distinção entre o preto e o branco. Todos nós, por baixo da nossa epiderme. Corre o mesmo sangue vermelho. E nossa ossada branca é o que vai sobrar. Num tempo qualquer. Quando a vida. Que seja de pretos ou brancos. Vamos nos encontrar nalgum lugar. Onde não façam distinção de que cor fomos.
Pra mim tanto faz. Como tanto se desfaz. O que conta é a cor da alma. Pra mim negros, cafuzos, amarelos ou pardos. Trazem a mesma cor por dentro. Pra mim somos todos iguais. Embora muitos pensem ao revés.
Preto no branco. Ponto e vírgula. Nunca ponto final…