A primeira dúvida que me assalta é a seguinte: a partir de quando somos considerados idosos? Seria a idade um divisor de águas no assunto velhice? Ou a questão de gozar de saúde plena, antes que o tal alemão, de nome Alzheimer, se aposse de nossa mente cansada, alquebrada pela idade, de fato é o fator norteador do mal da velhice? Alguém disse, com certa dose de verdade: “a velhice é uma fábrica de monstros”. Em acordo comigo? Ou frontalmente ao revés? É só olhar a face daquela linda moçoila, antes de pele viçosa e brilhante, com um traseiro de fazer corar a mais linda garota de Ipanema, com umas pernas de causar frisson na nada menos recatada mulher da capa da revista Playboy, dotada de uma cinturinha fina que dava conta de um abraço sem esticar os braços, de cabelos sedosos como pêssego maduro, linda como uma cotovia cantora de ópera do quilate de um Pavarotti, ou coisa que o valha. No que se transformou a tal moça. Num amontoado de rugas, de celulite, de barriga que encobre o que vem em baixo, de pernas trôpegas que mais se parecem lombrigas, de cabelos brancos, fininhos, que se despetalam ao menor pentear.
Como idoso tenho carteira de sênior, que faculta a quem a tem andar de ônibus de graça, de pagar meia entrada em cinemas, museus, locais onde turistas entram aos bandos, como maritacas gritadeiras atrás de jabuticabas maduras, como japoneses em excursão com suas máquinas fotográficas a tira ombro, e incontáveis benesses que apenas a idade provecta nos fazem senhores de nós mesmos. Sem ao menos sermos em verdade.
Mas, como nem tudo que reluz é prata, ou seria ouro?, estar velho passa logo, como a uva passa.
O que nos espera, na curva da estrada, é um caixão, sem gavetas, com alças amarelas de latão puro, a sepultura, lágrimas inventadas escorrendo lentas, fabricadas, pelos herdeiros que apenas olham o velho com ares de cobiça: porco gordo, marido velho, só dá lucro ao morrer, além de um rosário de enfermidades tantas, não preciso nomeá-las todas, pois iria cansar ao leitor.
Outras coisas boas, ou seriam menos ruins?, das quais os idosos são portadores, é o direito inarredável de não precisar enfrentar os Enens da vida, o vestibular já ficou atrás, a profissão deu ou não ibope, enricou ou continua a viver da minguada aposentadoria, que mal chega à primeira semana do mês, o que diria da metade? Meu saudoso pai já dizia, com a sapiência que Deus nele inseriu: “meu filho, não se aposente nunca. O ócio é o começo do fim”. Ainda bem que comigo não aconteceu.
Ainda sobre o mesmo tema, sem sequer fazer poema, o que sei fazer são crônicas, contar prosa, um romancinho ou outro aprendi escrever, ser velho é padecer num paraíso inexistente. Até hoje não inventado, talvez, num futuro pretérito, o que passou, passou, passeou, a mim não interessa. O que conta é viver o presente com ares de que o passado não se fez presente, o futuro a ninguém pertence, nós, os idosos, é que o fazemos cor de rosa ou cinza plúmbeo. Depende de que prisma, de que lado o miremos. Se com olhares de ternura, de candura, ou de saracura olhando o charco alagadiço, por onde tenta fugir do predador.
Hoje recebi um WhatsApp de um amigo querido. Ele assina Pedro Coimbra, notável jornalista, da minha idade, escrevinhador admirável, que em tempos idos tinha uma coluna num jornal ao lado das minhas linhas tortas, com sua fotografia naqueles óculos de fundo de garrafa, mais feio ainda do que eu, agora na idade do lobo faminto, que não come a Chapeuzinho Vermelho, que hoje é avó.
Sempre que do meu computador, em vias de ser trocado por um mais jovem (quem me dera essa troca pudesse ser eu), ao Pedro envio um texto recente, dos tantos que entulham a memória exausta dos meus arquivos, um dia meu computar naufraga, num mar tranquilo, ele responde numa mensagem de voz: “meu amigo Paulo Rodarte. Antes não o achava tão bom. Agora você fica cada vez melhor. Deus o ajude, o proteja, e todos fiquem do seu lado”.
Assim que acabei de ouvir esta mensagem, saída de dentro da alma de uma pessoa a qual estimo desde longa data, meu amigo, colega de farda, senti meu coração pulsando forte. Meus batimentos cardíacos acelerados. Minha pele clara encher-se de arrepios. Um suor estranho desceu-me da face ainda pouco enrugada. Acabei por chorar, de mansinho.
Foi então que redescobri mais uma prerrogativa de ser taxado de velho. Não a de poder andar de ônibus de graça. Nem ao menos ficar submisso ao andar trôpego. Nem ainda ficar entregue a cuidadores de idosos, muito pelo contrário ser assaltado pelo alemão Alzheimer. Mercê de doenças terminais, num leito de um CTI.
Essa prerrogativa se chama chorar. Motivada pela palavra sensibilidade, que começou a brotar de dentro de mim a partir de poucos anos atrás. Até a idade em que me situo agora.