Alguém acredita no destino? Que, uma vez que a morte chega, prematuramente, num acidente fatal, dando fim aos sonhos de um jovem sonhador, pais sepultando filhos, lágrimas escorrendo-lhes pela face crispada, dor, gritos de desespero, o caixão baixando lentamente a escuridão da terra, saudades doídas eternamente sentidas, uma vez em casa nada afasta dos pensamentos a figura linda do filho, que em pouco tempo seria doutor, depois de sacrifícios pungentes tanto de um quanto de outro, nenhum ser humano é capaz de aplainar a desventura da família que hoje, tarde morta, cuida de enterrar não apenas um jovem que tinha um alvissareiro futuro pela frente, que tudo tinha pra ser feliz e quase conseguiu.
Nenhum fim à vida pode ser explicado apenas pela fatalidade. Todos têm uma razão de ser. Os pais que sepultam filhos o fazem com o coração amargurado, apenas os desnaturados não vertem lágrimas cachoeiras, não sentem no peito um aperto que sufoca, a exemplo do laço que enforca o condenado a não mais viver.
Viver é uma dádiva. De quem, pergunto? Do nascer, de um poder supremo, que não mostra a cara, mas Nele acredito, como creio no amor. Não passamos pelo planeta sem hora e dia de dele esquecer. Todos somos predestinados tanto a encontrar o verdadeiro amor, ir de encontro a dor, ao desamor, ao ódio, ao rancor, a não mais sentir o doce sabor do mel, como também a experimentar o amargo sabor do fel. Entre paixões, emoções, amores sem idas e voltas, carreiras em busca de o quê? Até agora ignoro. Como também não sei a razão de a morte chegar antes da hora, levando em sua carruagem puxada por negros corcéis o corpo inerme de uma pessoa linda, por dentro e por fora. Que morreu numa curva da estrada, colhida de frente por uma carreta desgovernada.
Um dia, à porta de uma padaria, bem no centro nervoso da cidade linda onde não apenas vivo como desejo morrer, ao pagar a conta do cafezinho magro, um expresso fumegante e um pão de queijo modesto, dei de olhos numa senhora usando óculos, que pagava a conta inclusive de um maço de cigarros, fumar é coisa que abomino, muito embora, ao chegar da Espanha, depois de um curso de duração de um ano em minha especialidade, quantos anos são passados, mais de quarenta, um cadinho mais, fumasse cachimbo sem tragar.
Como de costume interpelei à simpática senhora, com a seguinte admoestação: “respeitável dama. Deixe esse hábito nefasto fora dos seus costumes. Pare de fumar, ainda é hora”!
Ela sorriu e se apresentou.
“Sou dona Fulana de tal (sou péssimo para guardar nomes de pessoas, por vezes me esqueço do meu).
O fato é que ela era, e ainda o é, embora aposentada, especialista em educação de crianças, pedagoga experiente e experimentada pelos anos tantos em que passou, a frente de uma biblioteca municipal, a mais procurada em nossa querida Lavras, alcunhada de terra dos ipês e das escolas.
Ficamos, defronte à igreja matriz, ensaiando uma prosa amena, cheia de saudades e coisas boas.
Ela bem conhecia, tanto meu lado médico assim como o outro escritor. Já havia deixado em sua casa de livros alguns exemplares dos meus amontoados de letras e palavras, muitas acrescentadas ao idioma pátrio a exemplo do notável Guimarães Rosa, autor de Grande Sertão Veredas e outros mais.
Era domingo, quase meio do dia. Não havia pressa. O almoço ainda não nos assediava a fome.
Enquanto ela falava da sua vida de agora, eu comentava, modestamente, sobre a minha.
Ela passava grande parte do tempo num sítio, herança do pai. Eu ainda morava na cidade, embora a roça estivesse inserida nos planos de um dia me trasladar para lá.
Contei a ela, de nome ainda olvidado, que, ao passar, antes das sete da manhã, pelo portão entreaberto de um colégio estadual, costumava adentrar, pedir licença à diretora, me apresentar a professora de português na finalidade precípua de ler alguma das mais de dez mil crônicas a alunos do segundo grau, dizer, tagarela que me considero que, todos nós, eu como exemplo, podemos ser tantas e tantas coisas que os dedos todos das duas mãos não dão conta de perceber. Depois da crônica lida, tentando me fazer entender com aquela turminha irrequieta, como o vôo do beija-flor, deixava meu derradeiro livro como presente à biblioteca da escola, era, e ainda sou, em verdade, um semeador de letras e palavras, um fecundo escrevinhador.
Despedimo-nos cordialmente. Não sei se a senhora deixou o cigarro de lado, e, em seu lugar passou a passarinhar os olhos em algum livro meu.
O fato retrato da nossa afável conversa, sem mentiras ou devaneios, sem ficcionar o real, foi assim que ela falou: “doutor Paulo. O papel que você tem desempenhado, tentando incutir letras unidas, cultura onde ela escapa, incentivando crianças na leitura, as crônicas são o caminho mais curto para apreciar o sabor de um bom livro, os gordos ao exagero cansam os olhos, principalmente os das irrequietas crianças, é o papel que era meu. Foi Deus que lhe colocou no meu caminho, graças ao bom pai de Jesus Cristo”.
Subi a rua levitando. Emocionado, apaixonado, não pelo dito, e sim pelo papel que a educada mestra me fez sabedor, naquele domingo cheio de luz, mais um domingo perto do almoço, só então me lembrei do estômago, dane-se a fome de comida, ao degustar tantas palavras de incentivo, tantos momentos lúdicos, que bom…