Descansa em paz

Essa é a expressão usada quando alguém se despede da vida.

Descansar em paz também denota um merecido descanso quando nos jubilamos do exercício de qualquer profissão.

Aposentadoria: palavra que enseja pra mim descanso. E se nós não estivermos cansados? Vale a pena aposentar? Permanecer o dia inteiro assentado a um banco da praça. Olhando as horas passarem. Acordar bem cedinho para ter mais tempo de ficar a toa? Jogando conversa fora a platéias que não o escutam. Matando o tempo para ficar mais tempo vendo o assopro do vento.  Ou ouvindo o murmúrio mouco do silêncio.

Aposentadoria pra mim rima com o vazio. Embora essa rima não seja do aceite dos poetas aposentar-se por completo soa no meu entendimento como indigesto. É como comer uma bela feijoada. Nesse verão calorento. Suando as bicas e ficar numa sala fechada sem usar sequer um ventilador. Não podendo piscinar numa piscina de águas cristalinas. Olhando um lindo cenário, tomando uma geladinha bem acompanhado por uma nina a qual se mostra em peças mínimas. Melhor ainda desnuda. Se bem que tudo aquilo não passa de um sonho. Que pode se transformar num pesadelo à chegada intempestiva de sua mulher ranzinza.

Aposentar-me por completo só quando meus pacientes deixarem de acreditar em mim. Enquanto estiver vivo não me darei o merecido descanso. Embora já tenha completado cinquenta anos de formado penso continuar na lida. Até quando? Nem sequer desejo imaginar.

Imagino sim persistir como médico urologista. Em atividade em meio expediente. Aqui chego meia hora antes das seis. Deixo minha oficina de trabalho lá pelas dez. Retorno precisamente as treze horas. Se houver uma consulta agendada para depois das quinze atendo. Se não caminho a passos rápidos à academia. Sou devoto de um santinho de nome “boa forma”. Não sei se ele existe ou se fui eu quem o inventei.

Malho, nado como um pato sem nadadeiras, ando como noticia ruim. Não tenho parança, já me disseram. Penso ter um tempinho para parar de vez apenas quando for introduzido numa sepultura bem escura. Mesmo assim, se não comprovarem minha morte. Não me abrirem os olhos, não auscultarem meus batimentos cardíacos. Não me derem um beliscão bem doído. Volto à vida. De onde não pretendo sair tão cedo.

Tenho um amigo, gente da prateleira de cima. Cujo nome de batismo é Januário.

Mas epitetei-o de Descansa em Paz.

Por quê? Podem me perguntar. Paz ele não tem.  Descansar não consta no seu vocabulário.

O Descansa em Paz jamais vai descansar. Assim pensava ele.

Acostumado à lida dura no cabo da enxada. A acordar ao cacarejar das galinhas. Meu amigo não tem descanso desde cedinho. Quando seu paizinho falecido o tirava da cama ao nascer do sol.  E quando chovia e os pingos da chuva martelavam em sua janela. Descansa em Paz não tinha sossego.

Era da cama para o trabalho. Da mesa do almoço para as tarefas da tarde. A noite não tinha descanso. Pra quê? Se indagava.

A lida na roça lhe tomava o dia inteiro. Ora era hora de tratar do gado. De limpar a pocilga dos porcos. De roçar a pastaria. E a ordenha da vacada não lhe dava descanso.

Tudo ia bem, até certo dia. Foi numa manhã ensolarada como essa que meu amigo Descansa em Paz acordou com uma dor estranha na parte de baixo do umbigo.

A principio pensou não ser nada. Quem sabe um desarranjo intestinal que começava.

Mas a dor persistiu. Aumentou de intensidade. Esparramou pro andar de cima.

Descansa em Paz nunca havia ficado doente. Uma gripinha de nada não o fazia ficar na cama. Nem uma catapora, de quando criança, deu conta de encalombar-lhe a pele clarinha.

Mas dessa ver foi coisa séria. Levaram o Descansa em Paz ao hospital. Na ocasião contava com apenas trinta e cinco anos. Era pura saúde. Vangloriava-se ele.

Ali permaneceu internado por alguns dias até que lhe deram alta.

Mas ele voltou a sentir o mesmo incômodo. O infarto dessa vez foi mais grave.

Foi quando fui informado do óbito do meu amigo Descansa em Paz.

Enfim ele descansou. Não por uma hora apenas. Seu descanso já dura anos. Que o meu retarde por muitos anos mais.

 

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