Depois de tanto tempo acabei acumulando…

A gente cresce. Tornamo-nos adultos. Envelhecemos. E nesses anos todos pensamos acumular qualquer coisa.

A principio, ainda jovenzinhos, recém saídos do colégio, a primeira barreira que se interpõe entre nós é o acesso à faculdade.

Não bastassem tamanhos atropelos tínhamos de enfrentar a dura barreira do vestibular. Um degrau apenas entre tantos outros que teríamos de vencer.

Acumulamos notas altas para vencer essa dura etapa. Éramos um entre milhares de candidatos. Todos imbuídos do mesmo desejo de se tornarem doutores.

Uma vez vencida essa etapa parecia que éramos vencedores. Ledo engano.

Uma vez doutores tínhamos de subir mais um degrau da escada. A especialização se tornava necessária. Pois quem seriamos nós para entender da intrincada colcha de retalhos que o ser humano se dividia? Precisávamos conhecer em detalhes desde a cabeça aos pés.  Passando pelo pescoço. Andando tórax adentro. Com seus conteúdos fundamentais para vermos pulsar a vida que cada vez mais pensávamos entender.  Indo mais abaixo imbricamos pelo abdome. Com seus conteúdos vários. Dentro dele situa-se o intestino e seus companheiros de jornada que ajudam a conduzir o excremento até a luz do dia. Não podia deixar de listar os rins. E seus condutos canaliculares por onde as pedrinhas saem. E se não saem como doem. Andando mais abaixo dessa cavidade que incha e desincha dependendo da dieta que deveríamos fazer. Ali se encontram os órgãos da minha especialidade. Entre eles merecem menção honrosa a bexiga reservatório de urina. Como uma gravata apertando o pescoço a próstata, quando incha, acaba entupindo, no homem idoso, e como ele sofre para exonerar a bexiga.

E o pênis, que antes funcionava tão bem, agora só tem serventia para urinar.  Ao fim da caminhada, corpo humano adentro. Finalizamos pelas pernas que caminham por muitos anos. Mas na senilitude não andam mais.

Dentro da minha profissão, se a gente pode acumular dividendos, que seja no começo. Pois na velhice a gente deveria descansar. Mas quem diz que o médico, uma vez jubilado, querendo aposentar. Pode sobreviver com seus caraminguados. Recebendo de aposentadoria apenas os benefícios da previdência social. Inclusos os reles salários que lhe pagam, como aposentado. Depois de incontáveis anos de trabalho diuturno em unidades de saúde, tanto da prefeitura como do estado.

Como exemplo cito um colega. Da mesma idade que meus muitos anos. Que se aposentou por completo no ano passado.

Doutor Manoel. Médico especialista em crianças. Que se dedicou uma vida inteira a atender telefones durante as noites.  Tentando tratar dores de barriga e esclarecer as mães ansiosas pelo choro da cria. Que não a deixava dormir. Esse mesmo doutor varava noites insones em plantões intermináveis.  Pelos quais percebia quase nada. Mesmo assim amava a profissão. Tinha por ela um amor sem igual.

Anos se foram. Doutor Manoel envelheceu. Doenças nele se aboletaram. Atroses, artrites, a vista claudicava.  Aos oitenta decidiu parar. Mas como? A mercê de sua aposentadoria, de menos de cinco mil reais, como pagar as prestações do apartamento? E a conta de luz e água? Que subiam às alturas. Como pagar o plano de saúde que mais e mais usava? Seria missão impossível viver e conviver com tais despesas.

Foi no sábado passado o nosso reencontro.

Encontrei o colega assentado a um banco da praça. Achei-o preocupado.  Cabisbaixo consultava sua conta bancária pelo aplicativo do banco.

Tirei-o daquele estado de concentração. Cumprimentei-o com um “boa tarde doutor”.

Ele olhou pra mim e retribuiu a boa tarde. E voltou a olhar o celular.

Deixei-o terminar a consulta. E começamos a prosear.

Naquela tarde chovia de leve. Acabamos por entrar na casa bancária.

“Doutor, soube que você se retirou de vez. Sábia decisão. Já era hora de descansar. Está feliz? Não sentes saudade do choro das crianças? E o tilintar do telefone? Não vai te incomodar mais? Que bom.”

Doutor Manoel olhou pra mim e deu seu testemunho.

“Olha meu amigo. Foram sessenta anos de dedicação de corpo e alma a pediatria. Quase não dormi esses anos todos. Quantas consultas atendi; até perdi a conta. Quantas mães me agradeceram e creio que igual número nem pagaram a consulta. Acumulei anos até essa idade em que agora me encontro. Perdi a mocidade. Ganhei experiência. Algumas vezes me agradeceram. Em alguns plantões fui xingado por atrasar o atendimento. Já que era uma unidade de saúde sem condições de trabalhar. Nesses meus sessenta anos de pediatria acumulei parcos rendimentos. Que mal davam para sobreviver. Acumulei apertos de mãos e tapinhas nas costas quando agradecidas as mães me elogiavam. Mas acumulei, também, advertências por ter chegado atrasado ao trabalho. Acumulei conflitos desnecessários. Em contrapartida acumulei verdadeiras amizades. Vivi em prol da minha especialidade. Acumulei pessoinhas felizes no meu consultório quando tive sucesso em tratar aquelas dorzinhas de barrigas que me acordavam durante as noites. Acumulei tantas coisas. Mas o que me fez mais feliz, durante a minha vida útil, talvez tenha sido um cadinho de tudo. Hoje acumulo saudades”.

 

 

 

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