Ninhos vazios

Sabe-se, principalmente aqueles que têm o prazer de viver na roça, ou ali, escondidinho ao pé da bananeira que já deu cacho, ou na moita de bambu, tem o umbigo enterrado, o coração lotado de sofrência por ter ido, num dia infeliz, morar na cidade, que o tico- tico faz o ninho, numa arvorezinha de aroeirinha do sertão, a que deixa manchas cosquentas no lombo, ao encostar-se a uma das suas folhas rajadas em verde e branco, num descuido do passarinho que na roça faz às vezes do vira-lata pardal aparece, vindo do nada, um pássaro preto preguiçoso, naquele ninho deposita seus próprios ovos, que são chocados pelo casal mourejador dos tico-ticos bons pais postiços que passam a ser. De vez em quando lucubro: qual seria a cara de espanto dos novos pais ao verem eclodir dos ovos aqueles passarinhos diferentes, que nada têm com a genética deles próprios?  Talvez o ticoticozinho olhe de soslaio a fêmea pensando em lhe dizer: “olhe aqui, sua putinha alada. Com quem me traiu, pessoinha apaixonada por você que nunca pulou cerca, nem com a canarinha que um dia me deu trela, nem mesmo com a andorinha com quem, uma única vez apenas troquei canto, ou assobiei, por um minuto apenas naquele fio de luz onde ela morreu de amor, não foi eletrocutada, por causa de um pássaro preto que ela amou, e não foi correspondida”. Não tive imaginação para continuar a confabulança entre eles. Por isso não sei se o tico-tico deixou a ticoticozinha entregue a sua dor, de ter de criar seus dois filhos, que não eram dela, e sim do pássaro pretinho safado, ele mesmo foi quem traiu o fiel tico-tico, num dia quando ele ia em busca do material para confeccionar o ninho, do qual noutro dia se apossou um casal de beija-flor.

Por falar em ninho, dá no mesmo que falar em lar, ou na casa onde passei dias felizes ao lado dos meus pais.

Daqui, do sétimo andar onde escrevo, em horas tempranas, já que a partir das oito o médico urologista entra em cena, tomara não para encenar o derradeiro ato, que este dia tarde, mais cedo ou tarde ele chega, se pode ver a casa onde passei a minha infância querida que os anos não trazem mais.

Eu a enxergo de costas virada para os meus olhos inquiridores. Pela frente a vejo na parte da tarde, assim que vou àquele clube onde persigo a juventude, exercitando-me naquela academia que tanto me faz bem, nado na mesma piscina do trampolim que não mais existe, embora a vontade de saltar no ar, a exemplo dos pássaros, apenas consigo-me ver levitar nos meus escritos, agora mesmo estou alçando vôo, sem conseguir ir pelos ares, como os urubus que pairam aproveitando as correntes de ar, aves tidas repulsivas, mas, outra vez, pergunto: “o que seria da gente sem esses garis de asas negras, bicos fortes que rasgam carcaças de animais apodrecidos, exalando de entro delas o cheiro pútrido da morte, que vem andando rápido puxada por corcéis da cor da noite, quando menos se espera, numa curva da estrada, seja quando ela vier”.

Aquela casa da Rua Costa Pereira, de número 155, onde hoje mora a minha irmã Rosinha, uma menina na doçura dos seus mais de cinquenta anos, ainda é o meu ninhal, embora não more mais lá.

Na minha casa de agora, bem perto, para os preguiçosos, os que não apreciam andar, deve ser considerada longe, um dia irei me mudar para o mesmo prédio onde nasceu meu primeiro neto, o Theo, na parte de trás, numa varanda quase nunca visitada, os donos alegam falta de tempo, há tempos nasceu, de um casal de beija-flores, dois filhotes lindos.

Quem observou tal feito foi minha querida amiga Ângela, secretária eficiente, uma faz tudo em minha nova casa, dá conta de lavar e passar, cozinha com perfeição de mestre, arruma todas as dependências do meu lar, e, se não bastante tantas qualidades ainda cuida dos passarinhos órfãos, com mais desvelo do que as próprias mães avoantes.

Depois que Ângela descobriu o ninho do beija-flor me encantei com ele. Não pelo ninho em si mesmo.  E sim pelos futuros beijaflorzinhos que um dia nascerão dos dois ovinhos diminutos, dali voarão um dia, e se desvencilharão dos pais, o mesmo não acontece a mim desde quando meus pais partiram rumo a infinitude do azul do céu. Quase sempre olho pra cima, procuro meus pais em algum lugar, me canso de olhar, não os vejo, apenas em fotografias em preto e branco, postadas pertinho de onde escrevo, todos os dias santos e não tantos.

Ontem, ao abrir cautelosamente a porta da cozinha do meu ninho lar, deparei-me com uma cena inusitada. Os dois beijaflorzinhos estavam à espera de um sinal. Não lhes vi os pais. Nem os meus. Aproximei-me pé- ante- pé. Para não assustá-los.

Numa fração de segundo as duas avezinhas avoaram. Uma delas bateu bico no muro, num vôo titubeante, em muito parecido ao meu quando embarquei para outra cidade, a fim de complementar meus estudos, tornar-me médico formado, inconformado em ser um João Ninguém.

Agora o ninho dos beija-flores ficou vazio. Sem a presença deles, sem os pais trazendo nos bicos a comida já mastigada, só restando a saudade deles, e da minha infância, que não volta mais…

Quando olho aquela casa da Rua Costa Pereira, meu ex-lar ninho, bate-me dentro uma saudade imensa deles, e de mim criança, doces lembranças, que, a exemplo dos tempos bons, também não retornam jamais.

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