Agosto, setembro, primavera inaugurando idade nova, qual seria a idade certa da primavera?
Que eu saiba ela existe desde o começo da primeira flor. Flores e primavera se confundem. Tal como a inspiração e o poeta, o amante apaixonado e a amada, as ruas apinhadas de gente e a hora de rush, o pai, a mãe, o filho, intimamente ligados por laços que apenas se desfazem quando a morte chega.
Por falar em morte muitos a ela receiam. Alguns consideram a chegada da morte com pavor, medo, estranheza. Mas ela é verdade insofismável. Da qual, por mais que desejamos evitar sua presença nefasta ela vem, de repente, quando menos se espera, com aquele séquito de urubus sobrevoando-nos a carcaça, com aquela foice maldita cavalgando-lhe os ombros esquálidos, com aquele aspecto de final dos tempos, um dia ela aparece. E quando a morte vem devemos nos preparar, com as armas que temos para a ela enfrentar, embora, sabido e não desmentido, enfrentar a morte pode ser empreitada malograda, impossível de a ela desdenhar.
Como médico, acostumado a enfrentar e conviver com a morte, muitas vezes sendo impossível de a ela vencer, ao pressentir a vinda da morte, naquele momento inexato, quando menos se espera a carruagem da morte não chega na hora esperada. E o enfermo, antes de fechar os olhos, de ser levado pro alto, onde seria a morada da morte? Seria por trás do azul do céu? Ou lá embaixo, nas trevas lúgubres do inferno?
Ontem estava mal de saúde. Com o corpo cansado, a musculatura enrijecida, uma febre inconsistente me assaltou durante a noite.
Foi depois de uma corrida de longa distância. Talvez uma virose tenha contaminado meu corpo usado, explicada pelo uso de água gelada demais, na intenção de aplacar, se não atenuar, a sede de vida que palpita dentro de mim.
Hoje, outro dia, diferente do ontem, sinto-me como se nada houvesse acontecido. A anterior mialgia, a febrícula se dispersou, o mal estar terminou, a saúde perfeita, até quanto tempo mais ela fica?
Por tudo isso quando se espera que a morte mostre a fuça feiosa, no mesmo instante outra cara mais alegre se apodera da gente. A vida é assim. Feita de momentos felizes, e outros mais ainda. Alternando-se com repentes de infelicidade, de desprazer, quando os tormentos sobrepõem-se aos instantes de sorriso líricos, nos quais a vida parece adquirir o colorido das asas das borboletas azuis, ou seja de que cor for.
Falando em primavera, no mês de agosto e setembro, meses quando os ipês, nas bandas de onde moro, onde gostaria de viver até quando a morte vier me buscar, as flores daquelas árvores lindas se abrem em suas cores gentis.
Primeiro aparecem as de cor amarela. São as mais lindas, no meu entender. Depois, tempos depois, vêm as de cor branca, branquinhas como a alma dos anjos inocentes. Para no final da florada dos ipês entrarem em cena as flores roxas. Todas as flores do ipês são irmãs. Embora de cores distintas.
Num dia destes, meio de semana, dia quente, um vento renitente assoprava tudo ao derredor.
Estava nadando numa piscina do mesmo clube pra onde sempre vou, depois de desvestir a roupa de médico, não aquele branca, que foi substituída por uma de cores distintas, não com a mesma beleza das flores dos ipês.
A entrada na piscina de águas mornas foi depois de malhar na academia. Estava cansado, músculos desalinhados, corpo preparado para, de novo, enfrentar a mesma rotina de todos os dias. Na cabeceira da piscina do clube que tanto aprecio mora uma linda árvore de ipê roxo.
Ela já está ali por anos e anos. Não sei precisar quantos anos são.
Durante os meses de agosto e setembro a vetusta árvore de ipê dá o seu show de strip tease.
Ela se despe das suas florzinhas roxas paulatinamente, graciosamente, um espetáculo digno de ser encenado nos palcos da Broadway.
Uma vez na piscina aquecida, com o corpo em movimento, dando braçadas vigorosas, percebi, no meio da piscina, uma florzinha roxa, caída da arvore mãe, debatendo-se febrilmente.
A pobre florzinha do ipê roxo estava prestes a se afogar. Nadei até onde ela estava. Fi-lo com braçadas suaves, na intenção de não complicar ainda mais a situação de aflição por que passava a pobre florzinha roxa, despejada do colo da mãe árvore.
Antes que chegasse ao ponto onde a pobre náufraga, assustada, amedrontada, tentando, debalde, não sucumbir ao seu destino cruel, a pobre florzinha afundou de vez.
Mergulhei ao fundo raso da piscina. Retirei a pobre flor submersa dos ladrilhos claros pra onde ela foi parar.
Levei-a à superfície. Ela parecia sem vida. Sem perspectivas de sobreviver.
Com a linda flor, quase morta, na palma da mão, tentei, numa tentativa desesperada, injetar-lhe um alento de vida pela boquinha semi aberta.
Pensei haver conseguido meu intento. Instantes depois, que me pareceram uma eternidade, a tal flor do ipê roxo voltou a respirar. Sei que flores não respiram. Talvez tenha sido mais um devaneio meu.
Com todo cuidado voltei a delicada flor rediviva a um galho mais baixo da árvore do ipê roxo. Fincado a não sei quantos anos à beira da piscina do LTC.
No dia seguinte, era uma quinta –feira, de novo passei por ali.
Acreditem se puderem…
A linda flor roxa do ipê, por mim resgatada do afogamento cruel, retornou à vida.
Lá do alto, sorrindo em minha direção, a florzinha do ipê roxo, junto às suas irmãs mais jovens, me agradeceu a restituição da vida, que eu, dentro da minha tacanha impossibilidade, com o coração feliz, tive a chance de driblar a morte, em favor da vida.