Dando nome as vacas

Hoje amanheceu com uma garoa fininha. Céu cinzento dando a impressão que vai chover no decorrer da tarde.

Esse tempo macambúzio me faz lembrar os mais de trintanos que passei na minha rocinha na tentativa inglória de pensar que todo médico podia ser fazendeiro.

Ledo engano. A cada ano era um retireiro. Profissão em extinção. Dada as dificuldades de se encontrar alguém disposto a acordar ao nascer da aurora. Faça chuva ou aquenta o sol. Calçar aquela botina gomeira furada na sola. Ou aquela bota de borracha que esquenta os pés. Para mais um dia ter de enfrentar aquela barreira defronte ao curral. E, não bastasse tantas dificuldades ter ainda de procurar a Braúna de bezerrinho novinho. Parida a noite passada num matinho obscuro. E ainda ter de procurar a mula manca. Que relincha e não se deixa encontrar. Pois ela bem sabe que tem de puxar carroça, pois o caminhão leiteiro não desce a ladeira naquela manhã chuvosa. E ainda tem de apartar as vacas de suas crias ao final da ordenha. Que deixam o curral mugindo de saudade de seus bezerrinhos. Com os focinhos branquinhos cheirando a leite. E o pobre desinfeliz tirador de leite tem seus fundilhos doidos de tanto assentar naquele banquinho tosco. Com o risco iminente de ser empalado se a vaca estranhar o incauto retireiro.

Foram-se tantos anos recheados de desenganos. Levava manta do meu vizinho espertalhão. O velhaco Geraldo da dona Nega me passava uma vaca que ele dizia todo gabola: “se ela não der trinta litros de leite na primeira tirada pode me devolver. Na segunda ela vai encher outro balde. Podes crer”.

Mas pura bazófia. A tal vaca recém parida. A qual ele jurava que iria dar tal quantidade de leite frio. A encher dois baldes até a boca. Ao chegar ao meu curral negava a raça. Mal dava três litrinhos quentes. Quando eu reclamava da compra ele dizia malcriadamente: “viu! você não sabe tirar leite. Devolver a Samambaia nem pensar. Fica com ela no seu curral. Quem sabe na próxima cria ela vai encher os baldes”?

E assim foram-se mais de trintanos. Acumulando prejuízos na minha rocinha prejuizenta até passar adiante meu sonho de ser fazendeiro do asfalto quente.

Ainda me lembro dos nomes que batizava minhas vacas.

Uma delas se chamava Bárbara Bela. Ela ainda tinha sobre. Bárbara bela do norte estrela.

A outra delas dei o nome de Muriçoca. Um dia a encontrei atolada no brejo da esperança morta. Nunca mais a vi. Penso que a coitada morreu de tanto tentar desafogar suas mágoas naquele brejo onde ela nasceu.

A Cinderela foi outra vaquinha na qual depositava a maior esperança que ela fosse à maior produtora de leite do meu rebanho leiteiro. Mas ela pariu uma cria e depois morreu no parto.

Foram-me trintanos de catiras e desenganos. Dava nome às vacas e elas não correspondiam ao meu intento de ser um bom produtor de leite. Não passava de cinquenta litros por semana. Imaginem o meu prejuízo. Sai da cooperativa devendo as calças e aquilo que usava por baixo.

Sempre tive aqui comigo que qualquer homenagem que fizerem a gente que o façam em vida. Depois de morto de nada adianta dar nome as ruas com o nosso sobre. Nem saberemos que fomos celebrados pós mortem. Ou que ergam um busto em praça pública tendo por cima a nossa cabeça que não tenha a menor parecença comigo mesmo.

Que me celebrem enquanto estiver por aqui e não zanzando lá nas alturas. Dentro do caixão não irei saber quem me pranteia. Ou que chora lágrimas de jacaré embalsamado.

Isso de dar nomes as vacas prefiro ser ignorado quando se tratar do meu.

Se vão me dar valor que seja agora. Não digam: “como ele escreve bem”. Prefiro que comprem meus livros antes que feche os olhos para sempre.

Foi ontem o acontecido.

Estava em visita a uma pessoa querida internada na unidade de tratamento intensivo no hospital aqui pertinho.

Que lindo ficou o prédio novo da Santa Casa.

Subi até o oitavo andar. O elevador só faltava falar. Mas ele falava indicando onde estávamos apeando.

Enfim chegamos ao CTI. Costumava chamar aquela sala de ante sala da morte. Onde se encontravam pacientes em box cheios de tubos e sondas a espera do juízo final.

Antes de ter acesso a onde estava minha querida amiga admirei os nomes que deram aquele logradouro estampado nas paredes.

Todos eles já falecidos doutores ilustres médicos que militaram naquele nosocômio.

Quando eu morrer. E não puder admirar as estrelas, pois estarei juntinho delas.

Por favor, eu lhes peço de pés juntos: “se quiserem me homenagear que o façam em vida. Dêem meu nome a um jardim florido. Ou a uma rocinha como a minha. Mas nunca a um lugar como esse onde me encontro agora. E não coloquem flores no meu jazigo perpétuo. E sim um monte de livros meus”.

Já dei nome as minhas vacas. A Cinderela subiu às estrelas. A Muriçoca se transformou em mosca. A Bárbara bela até hoje embeleza o céu. E eu continuo aqui mesmo a descrever o cotidiano até quando me permitirem, lá vou eu…

 

 

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