Percebi, naqueles olhinhos tristonhos, toda a angústia do abandono

É duro viver e conviver num pais onde pagam fortunas por um jogador de futebol e crianças inocentes dormem pelas ruas.

Ao mesmo tempo ofende-me a dignidade ao constatar que a riqueza nacional não muda de mãos. Enquanto a esmagadora maioria nada tem a comer; uma minoria endinheirada joga fora tudo aquilo que deveria encher a despensa de pobres coitados. Em festas nababescas esbanjam uma grana alta. E a dita alta sociedade faz de conta que tudo vai bem. Embora a realidade seja exatamente outra.

Avizinham-se as festas de final de ano. O natal se aproxima.

Lares bem estruturados enfeitam a sala de visitas com árvores suntuosas. Conquanto outras mal têm o que comer.

Mendigos famintos, fumando pedras de crack, esmolam pelas ruas. Mal sabem eles o mal que isso faz.

Políticos corruptos se locupletam com o dinheiro que deveria ter um destino e é desviado a outro.

Nunca se viu tanto desnível social.

Valoriza-se quem não tem valor. Enquanto heróis de verdade são esquecidos seus feitos em beneficio de nossa sociedade.

Idolatram-se ícones de pés de barro. Conquanto gente que em verdade tem valor são esquecidas e postas a margem.

Foi ontem o acontecido.

Ao deixar meu apartamento.  Bem cedinho como de costume. Percebi, logo a porta de saída. Uma cadelinha com costelas a mostra tentando comer o que não havia.

Nunca vi um cão tão magro.

Ela me olhava, com seus olhinhos encovados, temerosa do que eu pudesse fazer com ela.

Sem que elazinha pusesse objeção nomeei-a de Pretinha.

Pretinha, encabulada, acompanhou-me até a porta do meu prédio. Costelas a mostra de um jeitinho doce ela parecia me pedir, quase uma súplica: “por favor, me adote”.

Mal sabia ela que não seria possível. Embora desejasse mesmo dar a ela um lar decente.

Pretinha decerto foi abandonada nas ruas. Teria elazinha filhotes? Suas tetas inchadas me diziam sim.

Junto dela não estavam seus filhinhos. Era mais uma cadelinha triste e sem rumo. Vagando pelas ruas. Sendo escorraçada por ser persona não grata.

Pretinha nem gente era. Apenas mais um cãozinho viralatinha sem eira nem onde se encostar. Faminta a procura de o que comer. Sonhando com um bom prato de ração. Que fosse um saco de lixo com restos de comida.  Com o que se banquetear.

E ainda dizem que vira latas não são gente. Como a gente eles não são. Não fazem mal a ninguém como de vez em quando fazemos. Não abandonam os filhotes por mais que tentem alimentá-los, e não conseguem. Não jogam lixo fora do lata onde deveria ser atirado. Mas são considerados lixo por quem não gosta de cães.

Pretinha me olhava como seus olhinhos tristonhos. Como se pedisse, por favor, não me abandone. Nada tinha para dar a ela o que comer. Nem mesmo um naco de carne. Que fosse de segunda.  Nem ao menos um cadinho de ração.

Já tive cães. Eles nunca me atraiçoaram. Eles me deram exemplos de fidelidade e amor.

Penso não mais ver a Pretinha. Nem tempo de me despedir delazinha tive. Ao entrar aqui. No meu prédio. Onde tenho minha oficina de trabalho. Ao ver aquela cadelinha faminta em busca de comida.

Percebi, nos olhinhos dela, toda a angústia do abandono.

 

 

 

 

 

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