Ainda me lembro. Anos avoam. Quando eu, menino ainda. Na rua, em certa hora. Já deveria ter feito os deveres de casa. Minha querida mãezinha me repreendia em altos brados: “Paulinho! Venha pra casa! Ainda não fez os seus deveres. Amanhã é segunda-feira. A sua nota em aritmética não foi das melhores. Precisa melhorar senão vai ficar de castigo. Venha logo e eu te ensino a fazer contas. A tabuada não é tão difícil assim quanto você imagina!”
E euzinho, menino peralta, deixando a bola de capotão correr sozinha dizia encabulado: “mãezinha querida. Não poderia deixar pra depois? Agora que eu acabei de fazer um gol. Meus coleguinhas não vão ter com quem celebrar. Eles me prometeram um sodinha de abacaxi caso fossemos vitoriosos. E graças a esse tento feito no final vencemos de dois a um.”
E o tal de deixar pra depois teve de ser postergado para aquele dia mesmo. Pois senão uma vara de marmelo. Escondida por detrás da porta iria macular minhas nádegas rosadas. Ou aquele cinto seria usado não para segurar as calças de meu saudoso pai. E ele iria fazer às vezes do tal castigo tantas vezes prometido e adiado sine die para quem nunca sabe quando.
Eu acabei colecionando anos e boas notas graças aos conselhos dos meus queridos progenitores. Nunca fui bom aluno em matemática. Já com a lida de letras era o tal. Declamava de cor e salteado aquela linda poesia de um tal Quintana cujo nome era Bilhete: “Se tu me amas ama-me baixinho. Não grites de cima dos telhados. Deixe em paz os passarinhos. Deixe em paz a mim! Se me queres, enfim, tem de ser bem devagarinho, Amada, que a vida é breve, e o amor mais breve ainda”…
Já hoje, na quase aurora de minha vida. Cuja infância repousa anos atrás. No esplendor daquela rua que ainda se deixa ver embora diferente do que era. Tenho por mim que não se deveria adiar tanto tudo aquilo que se deve fazer no dia de hoje. Pois o amanhã tem a incertitude do desconhecido. A incógnita que mal sabemos. E a leveza que deveríamos repousar.
Hoje não temos mais a idade de outrora. Em boa hora deixamos pra trás o viço da mocidade. Somamos anos aos nossos desenganos. Colecionamos lembranças bons tempos aqueles da nossa meninice peralta. Quando nossa mãezinha nos chamava as falas e nos repreendia por algum ato falho. E a gente, moleques ainda. A ela dizíamos: “deixa pra depois”.
Mas o depois, naqueles verdes anos, poderia ser espichado pra muitos depois. Já agora, nesses tempos de hoje, desconhecemos por quanto mais os depois devem ser alongados. Já que bem sabemos as horas que agora contam. Mas nem de longe iremos saber quantos dias, meses, anos, nos sobram a partir da idade que agora se somam as tantas que já vivemos.
Deixa pra depois tem pra gente o sabor da incerteza. Antes a gente tinha a convicção que, se os dias passassem tanto faz como tanto se desfez. Já agora o tempo conta. E muito.
Não podemos deixar pra amanhã se nem sabemos o que ele nos reserva. Se chega ou não. Se vem ou não aparece. Se mostra a cara ou se esconde por trás da porta.
Já que não devemos deixar pra amanhã viva o agora. Curta o presente. Dance, conte piadas. Abrace. Não se mostre descontente. Não guarde ressentimentos. Perdoe. Não vire as costas a quem lhe estende a mão. Da mesma maneira não se esqueça dos bons ventos que lhe assopraram tempos atrás. Mas não tente ir contra os ventos. E não invente nada que o faça infeliz. A felicidade está logo ali. Procure encontrá-la onde ela mora. A sua morada não vai ser numa casa luxuosa e sim onde a simplicidade encontra abrigo.
Não deixe pra depois aquele abraço que deveria ter dado naquele instante de fraternidade. Procure abraçar amigos mesmo quando eles se recusarem. Quem saberia dizer se aquela recusa foi por algum motivo que por ventura desconheça?
Conte agora aquele segredinho que o atormenta. Não guarde dentro de si mágoas ou ressentimentos. Amanhã por certo elas serão esquecidas.
A gente envelhece. Ninguém fica imune a passagem dos anos. O passado não deve ser olvidado. Mas não vale a pena ficar só pensando nele. Já que temos pela frente o futuro. O presente fica logo aqui agora. Não se deve deixar para depois todo e aquele ato que nos faça bem ao coração. Um dia ele para de bater. E você não vai poder dizer: “que bom que tive tempo de te amar. E como foi infinitamente bom aquele carinhoso abraço que lhe dei. E acabei por te perdoar das ofensas e injúrias que escutei”.
Não vou deixar pra depois se posso deixar escrito nessa hora. Como foi bom dizer a vocês o prazer inenarrável que essa crônica deixou escrita dentro do meu eu. E outras tantas que por certo irão nascer no decorrer dos outros dias que irei viver.