Incomoda-me

Hoje, bem cedinho, ao abrir a porta do prédio do meu consultório, deparei-me com duas senhorinhas a espera de entrar.

O gentil porteiro ainda não havia chegado. Numa segunda feira, começo de semana, inicio de novo mês. Torna-se previsível qualquer atraso. Sábados e domingos são feitos para descansar.

As duas estavam tiritando de frio. Um ventinho assoprava de baixo. Fazendo qualquer um se enregelar.

A intenção das duas senhoras era de tirar uma ficha para entrar na fila da mamografia. Com certeza seria feita pelo sistema único de saúde. Não sei pra quando elas iriam conseguir. Outros retardatários deveriam chegar tempos depois. Uma longa espera por certo eles teriam de aguardar. No mês seguinte. Dois, três, quiçá, um ano depois…

Desde quando militava a serviço do SUS me incomodava com a inutilidade da espera. Os pobres desafortunados pacientes tinham de agendar consultas para um ano inteiro. Quando suas doenças ou haviam se curado espontaneamente ou seria tarde demais.

Naquele postinho de saúde, desapetrechado de quase todos os recursos. Menos de calor humano e solidariedade tanto das prestantes enfermeiras e de nós esculápios compadecidos da pobreza dos consultantes. Lá estávamos a fim de tentar atenuar dores e sofrimento. Pena que nossa árdua tarefa esbarrava na falta de vontade dos governantes. Já que a saúde é, senão a pasta mais a difícil de ser gerida. Um poço sem fundo a cata de recursos.

Incomoda-me, e muito. As longas filas de espera que se formavam nos pronto atendimentos onde pessoas desassistidas não viam a hora de chegar a sua vez.

Quando crianças tossindo, no colo de suas mãezinhas. Que ali ficavam desde a noite passada a espera da abertura daquela unidade de saúde. Que por vezes não podia oferecer um atendimento digno por falta de recursos. Já que as verbas destinadas à saúde eram desviadas para outras esferas. E até hoje não se sabe pra onde elas iriam. Uma incógnita mal resolvida até a presente data.

Ofende-me a dignidade as diferenças sociais observadas em nosso imenso pais. Onde uma minoria ínfima detém quase a totalidade da riqueza nacional. Onde a riqueza impera em detrimento da pobreza que viceja. Como erva daninha. Amontoados em favelas. Morando em construções de risco em morros que desabam a menor chuvarada que cai dos céus.

Incomoda-me ao ver animais abandonados pelas estradas. Cujo único pecado foi terem crescido um cadinho mais e seus latidos incomodavam a vizinhança. E latem chorosamente a espera de seus donos que não voltam mais.

Faz-me quase derramar lágrimas ao ver gente como deveria ser a gente. Dormindo ao relento. Cobertos toscamente por restos de papelão. A mendigar sobras das mesas.  Uma vez que foram alijados de restaurantes granfinos. Onde a conta a ser paga ultrapassa a mais de quanto esses párias sociais nunca irão ver em suas vidas.

Faz-me crer que quase tudo está perdido. Não vejo a luz ao fim do túnel devido à escuridão reinante.

Fere-me a dignidade ao ver tanta desgraça acontecendo em nosso mundão que deveria ser tão lindo. Enchentes ao sul, queimadas dizimando animais silvestres num dos maiores biomas mundiais que se chama Pantanal.

Ofende-me o decoro ao constatar tanta roubalheira que. Se se desobre o autor o mesmo não recebe a punição devida. Conquanto colarinhos brancos e engomados. Se cometem crimes não esquentam cadeia. E retornam a luz do dia no dia seguinte. Em disparidade com o pobre coitado. Que não pode pagar pensão alimentícia paga cadeia ao lado de facínoras irrecuperáveis como se comprova em nosso cotidiano perverso.

Incomoda-me sim. Cada vez que saio às ruas.  Nessa minha caminhada adversa. Vendo tanta coisa errada que poderia ser consertada. Mas não é.

Culpa de quem?

As eleições de avizinham.  Quem sabe votando certo poderíamos sanar tanta desigualdade. E amenizar tamanha miséria.

Aquelas senhoras que esperavam. Aqui, à porta do meu prédio.  Se pudesse perguntar a elas as suas opiniões. Talvez elas fossem responder que se incomodavam tanto quanto eu.

 

 

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