Chovia torrencialmente naquela madrugada de segunda feira.
Uma lama viscosa recobria a estrada.
De carro não se podia ir.
Só restava a ele uma longa caminhada.
Chico Bento não era de faltar serviço. Todos dos dias, há mesma hora, pela estrada afora ele ia bem sozinho. Em boa companhia de si mesmo. Contando os passos bem devagarzinho.
Naquela manhã a lua nem pôs a carinha de fora. Céu escuro. Nuvens negras prenunciavam mais chuva no decorrer do dia.
Vacas famintas mugiam à beira do curral. Já era hora de se banquetearam no cocho cheio de silagem já azeda como se sentia o retireiro madrugão.
Chico não tinha folga nem aos domingos e feriados. Dias santos pra ele eram iguaiszinhos àquela segunda chuviscosa. Que para sair da cama nem com reza brava e centenas de Aves Marias. E os Padres Nossos, friorentos, se aqueciam debaixo das cobertas.
Chico deveras era pau pra toda obra. Era ele quem carpia o sarandi. De foice em punho foiçava mato alto. E, quando levava cascavel na canela era ela morta a enxadada.
Chico Bento, diziam, nos arrabaldes, que era meio afeminado. Mas nada disso era verdade.
Caboclo macho criado a leite de cobra. Nunca levou desaforo pra casa. Uma vez apenas apanhou de uma dezena de indivíduos que tiveram infelicidade de dizer: “Chiquinho. Você usa saia? Cadê sua anágua”?
Desde então Chico, depois de se enfiar naquela briga ruim. Nunca mais teve sua fama posta em cheque. Valentão ele não era. Mas fugir da raia nunca lhe passou pelas idéias.
Naquela manhã de segunda feira ele chegou à rocinha com barro pelas canelas.
A velha botina furada estava mais ensopada que sua cueca branca e encardida. O boné, uma vez virado, derramava água por todos os lados. Mais parecia uma bacia furada.
Há essa hora o patrão devia estar dormindo a sono solto. Roncando que nem capado gordo.
Mas Chico nunca regateou serviço. Era um enxadachim de primeira. E um foiceiro de fazer inveja a quem quer que fosse.
Uma vez ordenhadas as vacas ainda lhe restavam mais uma infinidade de coisas a fazer.
Ali pertinho a porcada faminta grunhia de fome. Um capado gordo deveria ser abatido naquele final de semana chuviscoso. Mas cadê a lenha sequinha para sapecar o dito? Na chama de gás não dava. No fogão a lenha, cadê a lenha?
Eis que. No dia seguinte. Naquele domingo quando ainda chovia. Chega o patrão com a família todinha.
Mais boquinhas esfomeadas a espera de comer o capado gordo acompanhado de uma lauta feijoada. Mas quem diria que tudo estava prontinho?
A chuva despencava do alto sem sinal de que iria parar um cadinho.
Chico não se desequilibrou. Deu mil desculpas deslavadas ao patrão. Estava claro. Naquele céu escuro. Que o motivo de não ter matado o porcão obeso era o tempo chuvoso. Faltava lenha para sapecar. O bico de gás não funcionou. A trempe do fogão a lenha não crepitou.
Insatisfeito com as desculpas de Chico o patrão deu-lhe bilhete vermelho. Foi despedido por injusta causa. Sem direito a choro nem vela amarela.
E teve de volta à cidade de mesmo jeito que veio. Mais molhado que pato nadando. Desempregado, faminto, ainda se lamentando por ter caído numa poça de lama.
“E ainda sobrou pra mim a fama de ruim de serviço”.
Lastimava-se ele.