Passando a limpo

Quantas e quantas vezes tive de fazer uma cópia melhorada num texto que está em rascunho. Refazer a lição de casa devido aos senões a serem corrigidos.

Ou ainda esclarecer um assunto a ser resolvido. Pensar duas ou mais vezes antes de cometer o mesmo logro. Ou, pensando melhor, o nosso amado Brasil carece, com certa premência, de passar a limpo seu histórico de corrupção.

Mas já passei muitas vezes a borracha quando escrevia letras tortas e mal escritas. E escrevia garranchos ininteligíveis naqueles caderninhos pautados. E minha mãe sempre me repreendia: “Paulinho. Preste atenção no seu dever de casa! Não acentue o a. Nesse caso não é preciso acento. Corrija a frase antes que a professora leia na sala de aula”.

E eu, aluno atencioso, prestava mais atenção na aula de aritmética. Já que sempre pelos números não tinha nenhum chamego. Como pelas letras até hoje tenho a maior devoção.

Passando a limpo a vida que tenho levado. Eu, desde menino levado da breca. Quando terminava a última aula. Naquele mesmo colégio por onde passo ao cair das tardes. Quase mortas. Com a barriga ronronando de fome. Dava uma passadinha na pastelaria que dantes havia. Hoje ela não mora mais. E filava um pastel de queijo de um colega abonado. E prometia que no dia seguinte seria eu que iria pagar o pastel. Mas, na falta de grana dava o cano alegando dor de barriga. E me furtava a pagar um pastelzinho de queijo aquele coleguinha que hoje por certo é avô como eu sou.

Já passei a limpo tantas vezes aquela linda garotinha que pensava me amar de verdade. Mas ela só tinha olhos para outro menino. Que, mais esperto que eu usava dizer que era mais estudioso. E dava cola quando elazinha precisava.  Enquanto euzinho, assentado à última carteira, só observava o relógio quando ele mostrava a hora exata de a aula de matemática terminar.

Passando a limpo tantas vezes minha vida corrida. Nessa azáfama do cotidiano que vivia. Uma vez já assentado praça nessa cidade que amo tanto. Tendo de me desdobrar entre três hospitais. Operando diuturnamente. Lembro-me das noites insones. Quando o telefone tilintava aos meus ouvidos. Intimando-me que voltasse com premência a socorrer algum paciente. Recém operado de próstata cuja sonda era entupida por coágulos duros.

E passando a limpo anos a fio. Já faz muito tempo o ocorrido. Como sofri na perda de meus pais. Foi a partir do passamento de meu progenitor que deixei escrito minha primeira crônica. Seu titulo – “Réquiem a um pai sem limites.” E depois não parei mais.

Já passei a limpo instantes de minha vida. Quando nasceu meu primeiro filho como me senti feliz. E quando minha pequena jornalista veio o mundo – chorona e cheia de vontade. Da mesma maneira meu coração tiquetaqueou mais forte.

Passando a limpo minhas desventuras elas não me fizeram perder a esperança. Sonho até hoje de olhos abertos. Temo fechá-los e não acordar mais.

Já passei a limpo incontáveis histórias em meus mais de setentanos. Foram ilusões perdidas algum dia as reencontrarei.

Já passei a limpo amores que eu tive. Deles nunca me olvidarei.

Passando uma borracha nos anos que passaram tenho por mim que valeu a pena vivê-los todos. Na esperança que dias melhores suceder-se-ão.

Só não desejo passar a limpo senões que eu cometi. Ou melhor. Desejo sim. Que se perenizem nas minhas lembranças instantes mágicos junto aos meus pais.

E outros mais que irei passar de agora em diante.

E, ainda melhor. Se um dia puder passar a limpo uma cópia melhorada do que sou. Ou daquilo que fui. Prometo fazê-lo logo. Antes que minha passagem por aqui se anuncie.

 

 

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