Vida.
Conhecer o mundo pela primeira vez. Descortinar e desvendar os olhos incrédulos pela beleza do exterior. Deixar o achego gostoso do útero de sua mãe. Abrir os olhos e cheirar o hálito perfumado das madrugadas até então desconhecidos. Estabelecer o primeiro contato com a vida aqui fora. Aprender a distinguir entre o bem e o mal. De meninozinho ou meninazinha passar a jovenzinho ou inha. Crescer. Aprender as primeiras letras. Desaprender quando não se pode estudar.
E assim caminha a humanidade. Entre percalços e bem aventuranças. Deixando a infância de lado. Sofrendo por isso. Já que, uma vez adulto, as brincadeiras se transformam em trabalho. Em constituir família. Em assumir responsabilidades. Já que o envelhecer e morrer são consequências banais disso que chamamos vida. Que no mais tardar dos anos finda. Tal e qual uma rosa que se despetala e cai na terra encerrando o cilho de uma flor que de botão se torna adubo de uma roseira que um dia viu a rosa enfeitar um jardim florido.
Viver, no meu entender, se torna quase uma utopia ingrata desde que a saúde nos abandona.
Viver em intensidade plena pode se transformar num martírio de sofrimento.
Foi isso que aprendi com um amigo que felizmente foi levado nas asas negras da morte.
Seu nome era Pedro.
Notável jornalista escritor bastante reconhecido nesta cidade que também considero minha.
Éramos articulistas no mesmo jornal. Escrevíamos a cada semana lado a lado. Eram textos fecundos e inspirados.
Fui, inclusive, prefaciador de um dos seus livros. O que me encheu de orgulho não por ser seu amigo chegado. E sim por ter-me dado essa não meritória homenagem.
Quis o destino que meu amigo Pedro fosse acometido de insidiosa e cruel enfermidade.
E como ele resistiu estoicamente à chegada da morte. Éramos amigos de verdade.
Ainda me lembro de quando passava pela sua morada.
Encontrava o amigo Pedro recostado ao leito. Cuidadores se revezavam aos seus cuidados.
Quase sempre o levava a um passeio. Ele, no banco do carona, e seu enfermeiro no assento de trás.
Numa dessas curtas viagens ele, que não se mantinha calado, matraqueava:
“Se viver é sofrer. Por favor, liber-te-me desse sofrimento. Deixe-me avoar ao firmamento. Se viver é isso não quero mais continuar vivo. A essa vida bandida prefiro me agasalhar nas asas negras da morte. Não tenho mais razão para viver já que o sofrer se instalou no meu corpo esquálido. Agora só cultivo dores e dissabores. Nem escrever consigo mais. Que saudade de nossas crônicas semanais naquele jornal que nem existe mais. De nossas mensagens pelo watsapp. De nossos encontros naquelas páginas do jornal. Da ciumeira que eu tinha quando meu texto não saia e o seu sim. Se agora isso é vida, por favor. Você, como médico, atenua o meu sofrer. Permita que eu parta. Se isso é viver melhor morrer. As dores são tantas que gostaria de repar-ti-las com alguém. Não mais consigo dormir. O sono vem e meus olhos continuam abertos a espreita de que uma alma caridosa os fechem. Se isso se chama viver desconheço o sentido exato da vida. Creio que essa vai ser a derradeira vez que nos vemos”. Pedro apertou-me a mão assim que chegamos a sua casa. Foi a última vez que nos vimos.
A verdade aprendi com meu amigo hoje falecido. Se viver é sofrer apenas não tem mais razão de continuarmos vivos.
Viver tem de ser em intensidade plena. Tendo como requisito principal ter encontrado a razão pela qual vivermos felizes. E se, um dia, perdermos a saúde. Permitam-nos conhecer o outro lado. Mesmo desconhecendo se ele existe.