Foi com essa disposição que acordei no dia de hoje.
Choveu a noite inteira e a chuva continua mansa nesse despertar de um novo dia.
O ano recém começou. Céu cinzento, ruas vazias.
Mais tarde talvez o movimento comece. Ano novo vida nova. Diz um dito antigo.
A chuva incessante acaba atrapalhando o ir e vir do povo andando pelas ruas.
Considero-me um otimista.
Dantes, mais jovem, quando algum percalço se interpunha entre mim (ou mais escorreito seria eu), e meus objetivos tomava-me pela ira. Agora que o tempo passou. Anos avoaram e cheguei a melhor idade. Tanto faz como tanto se desfez se água corre pra cima. Melhor dizer pra baixo. Se molho ou se fico seco. Se a vida escorre lenta ou apressada. Já que passei por tantas efemérides e não consegui mudar o status quo. Por que me atazanar por pequenas coisas? Mudar o que está dando certo ou tentar ficar do jeito que anda? Dá no mesmo que remar contra a corrente. Melhor nos conduzirmos de acordo com a maioria. Aprendi que a voz do povo é que dita as normas. Mesmo em desacordo com a nossa consciência.
Como disse antes nos dias de hoje passei a achar tudo bom. Se o dinheiro falta não me apoquento. Se me falta a paz não procuro a guerra. Se acho aquela mulher feia não digo a ela. Se ando depressa não atropelo quem anda devagar.
O ano novo começou chuviscoso. Céu cinzento nuvens negras tapam a boca do sol.
Vizinho à minha rocinha mora uma pessoinha pra mim exemplo do otimismo.
Seu Mané nunca o vi de mau humor.
Ao revés. Ele, na sua banguelice um mil e um, sorri da própria desgraça.
Se chove ele não renega. Se o sol incendeia ele faz troça do calorão.
Seu Mané, desconheço-lhe o sobre, quando lhe perguntam qual a sua idade ele graceja: “ah! Já passei e muito, da mocidade. Não conto anos. Muito menos os desenganos. Antes era feliz e não sabia. Agora sou mais feliz ainda”.
Ele mora numa casinha tosca iluminada à luz de lamparina. Lá energia elétrica nunca soube o que era. Televisão só se for aquela que os cachorros ficam olhando o frango gordo ser assado quase pronto para ser comido. Quando falta querosene na sua lamparina ele dorme contando as estrelas. E nunca perde o sono como nós da cidade.
“Não podia ser melhor”. Trata-se de uma expressão que ele usa sempre sorrindo de uma ponta a outra de sua orelha orelhuda.
Naquele fim de tarde, quando o encontrei, já de volta da minha roça. Ele conferia suas nádegas magricelas na mesma laje de pedra costumeira.
Tive de parar um cadiquinho.
Apeei da minha caminhonete branca já tinta de barro.
Não podia fazer uma desfeita ao velho amigo.
Foi ele quem puxou prosa.
“Cumequié? Tá cum pressa? Tem argo rugindo na cidade a sua espera? Carma! A vida anda mansa. Tamo no começu do anu. Ainda farta mais de alguns dias para ele terminá. Se anda divagar o anu termina. Se tem pressa ele acaba du memo jeitim. Para aqui um cadim pra modus de a gente proseá”.
Não tive como contestar ao seu convite. Quase uma intimação.
“Tá tudo nos conforme amigo Mané. Estou um cadinho atrasado. É quase seis da tarde. Tenho medo de a chuva engrossar e acabar atolado nessa estrada nada benta. E como tá tu”
“Tô cada vez mió. Anus passam e não vejo nem oio o tempo passar. Tô quase descendo o morro. E não sei se morro ou vivo mais alguns anus. Anos com o e não com u pois já fiz o tar exame injoado. Ocê si lembra do ano passado? Quando vosmecê enfiou seu dedão no meu butão”? Não dueu quase nadica de nada. Mas dizem que eu levei flor pra ocê. Mintira né”?
Hora e mais de meia se passou. E acabei indo embora.
Um chuvão despencou do céu naquela hora.
Ainda pude ouvir da boca desdentada do Seu Mané isso: “não pudia se mió!”
Num é!!!