Monólogo de um idoso

Naquela noite Seu Manoel não pregou os olhos.

Como de seu costume acordar cedo era sempre o que fazia.

A noite pra ele era um desperdício de tempo. Pra que passar horas inteiras na escuridão.  Se o tempo de vida que lhe restava era tão curto. E com certeza iria passar ao outro mundo de olhos fechados mal enxergando a luz do dia. Dai a sua ojeriza pelas noites. Por elas não tinha nenhuma simpatia.

Aquele senhor, há tempos enviuvado. Agora vivia solitário numa casa de idosos.

Não que não tivesse sua própria morada. Mas daquela casa ampla foi despejado pela família. Dois filhos ingratos, naquele lugar recheado de lembranças. Naquele lote vazio construíram mais um espigão. Dos tantos que a cidade abriga. Adeus as velhas casas, de muros baixos e roseiras no jardim.

A partir de então o velho Manoel passou a morar numa casa estranha. Ao lado de outros velhos desconhecidos. Como ele ao desabrigo de afeto. De calor humano. Entregue ao abandono como um cão vadio que perambula pelas ruas a procura de comida.

Naquela data de fevereiro, que deveria ser festiva, Seu Manoel fazia aniversário.

Era um sábado de céu azul, caloroso como um abraço de mãe.

Ele completava noventa anos.  Todos eles ao lado de sua amada Maristela.

No ano passado ela subiu aos céus. Sem pedir licença elazinha se ausentou.

Depois que sua amada partiu nada mais restou ao Seu Manoel senão lembranças ternas.

Filhos nem o visitavam naquela casa de idosos. Nem no seu aniversário compareceram para dar um abraço no pai. Que tanto fez por eles durante toda a sua vida útil. Agora era simplesmente um inútil. Um fardo pesado aos seus ombros fortes.

Aquela data foi passada em branco. Ninguém se lembrou do cumpleanos daquele senhor de idade avançada. Noventa anos não se fazem todos os dias. É preciso viver muito para se chegar a essa idade.

Já era tarde quando Seu Manoel foi tentar dormir. O seu aniversário se foi num suspiro bem dado.

Olhando pras paredes. Com seus olhinhos tontos de sono. Seu Manoel deixou escrito numa carta de despedida.

“Hoje completo noventa anos. Não sei se vai ser o último. Aqui me encontro só. Perdi a razão de viver desde que minha amada Maristela se foi. Minha data natalícia foi passada em brancas nuvens. Nem um bolinho onde assoprasse velinhas tive o prazer de assoprar. Não carece dizer que meus filhos não comparecerem. Nem me lembro mais de quando vi meus netinhos. São três os molequinhos. Que bom seria tê-los aqui comigo nem que fosse um cadinho. Sei que eles amam o seu avozinho. Mas meus filhos dizem não ter tempo para trazê-los onde agora resido. Não que queira presentes. Simplesmente careço de afeto. De visitas que não vêem. De abraços que não são dados. De apertos de mão que aquecem a minha no tempo de frio. Se alguém ler essa missiva não lhes peço que se compadeçam de mim. Nem que me levem daqui. Sei que sou um peso morto aos meus descendentes. Fui útil enquanto vivi no trabalho. Mas deixei de sê-lo ao atingir certa idade. Agora vivo de teimoso. Estou vivendo nos descontos do terceiro tempo. Agora sou idoso. Não me chamem de velho gagá. Não mais tenho vaidades. Nem me olho no espelho. Nem penteio o que restou dos meus cabelos. Minhas interlocutoras são as paredes. Se falo com elas elas nem me respondem. Simplesmente me calo. Não mais tenho amigos. Esses velhinhos que aqui estão olham apenas o vazio. Com olhares inexpressivos penso que eles caducaram. Se eu viver mais um dia não me visitem no caixão. Visitem-me sim agora, antes da extrema unção. Não lhes peço nada que não preciso. Careço apenas do conforto de um olhar amigo. Hoje completo noventa primaveras. Estou no outono outono da minha velhice. Já tive muito. Agora nada tenho. Já tive família. Agora nem ela tenho mais. Já fui jovem. Já deixei de ser adulto. Agora me sinto um traste inútil. Uma coisa sem valor como uma nota de reles dois reais. Se alguém passarinhar os olhos nessa carta peço que a leiam em voz baixa. Não a rasguem nem a joguem fora. Mas a guardem com carinho pra ser lida pelas futuras gerações. Muitas vezes converso com as paredes. Mas elas ficam mudas. Agorinha mesmo, que a lua já se põe no alto, vou fechar os olhos. Se porventura de uma desventura eles não se abrirem de novo não pensem que morri. Singelamente consegui dormir. Sonhando com meus netinhos aqui, no dia seguinte ao meu aniversário, rindo e fazendo carícias na minha barba nevada. Mesmo que seja pela última vez.  Antes da minha partida para morar juntinho a minha amada Maristela. Nesse céu azul onde ela mora”.

Parece que sua carta teve resposta. Na manhã seguinte Seu Manoel fechou os olhos para sempre. E não estava dormindo de verdade. E nem foi um sonho meu.

 

 

 

 

 

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