Descabida idolatria

O país amanheceu debaixo d’água.

Nada se podia ver no horizonte senão a cinzentice do céu.

Chovia desde o final do ano passado. E janeiro acordou do mesmo jeito.

Enchentes, inundações, trovões e enxurradas eram comuns naquele lugar ermo.

A lama impedia qualquer acesso aquela rocinha onde morava Seu Chico da dona Amélia.

Gente da prateleira de cima. Admirados por todos aqueles que os conheciam.

Eram um grude só. Um pelo outro no passar de tantos anos juntos. Nunca os viram discutindo. Enquanto dona Amélia dava uma limpeza na sala de ordenha Seu Chico alimentava a vacada.

Eles não tiveram filhos. Viviam na maior harmonia naquela rocinha distante da cidade.

Se bem que a idade já lhes cavalgasse os costados não pareciam ter a idade que mostrava suas identidades. Dona Amélia contava com oitenta anos. Seu Chico um ano a mais.

Eram exemplos a serem seguidos. De uma honestidade impar e uma capacidade laboral de fazer inveja ao mais denodado trabalhador braçal.

A noite vinha e os encontrava juntinhos a assistir televisão. No máximo às nove e meia já se recolhiam ao leito. E acordavam bem cedinho. Enquanto dona Amélia tratava das galinhas Seu Chico já estava no curral.

A renda com que viviam não ultrapassava mais que dois reles salários mínimos. Mesmo assim, nas suas modestas concepções, eram felizes e bem o sabiam.

Os domingos eram reservados ao culto naquela capelinha do povoado. Ali compareciam com as melhores roupas que possuíam. Dona Amélia ainda guardava os traços intactos de uma beleza dos tempos da juventude. Olhos bem azuis. Pele clarinha como algodão. E o corpo sem deixar ver qualquer indicio de gordura a macular seu abdome. Ela era admirada por todos. Da mesma maneira que seu marido inspirava confiança a todos que o conheciam.

Naquela noite, antes de dormir. Com os olhos marejados de sono. O casal assistia a apresentação de um famoso jogador de futebol a sua terra depois de muitos anos de ausência.

Era uma catarse coletiva em volta do estádio. Um amontoado de pessoas ávidas pela chegada do ídolo.

A turba ensandecida pagou uma bagatela de cem reais para ver aquele “heróico” personagem de volta ao clube. O show estava prestes a começar e a chuva não cessava. Mas ninguém arredava pé.

Amanheceu na rocinha do seu Chico. A chuva não dava tréguas. A tempestade inundou tudo ao derredor. As latas de leite quentinho boiavam na enxurrada. Tudo estava irremediável mente perdido. Menos a coragem do velho casal.

Causa-me estranheza como nesse país valoriza-se quem não tem valor.

Endeusam-se jogadores de futebol. Idolatram-se artistas que nunca mostraram arte de verdade. Os tais influenciadores digitais são valorizados por seus seguidores.

Conquanto gente boa como Seu Chico e sua esposa Dona Amélia são ilustres desconhecidos.

Acostumados às desventuras da vida. Mãos ásperas de tanto trabalho. A acordar bem cedinho recurvados no cabo da enxada.

Essa descabida idolatria me faz pensar em dias melhores.

Até quando vamos dar valor a quem não o tem? Até quando vamos endeusar falsos profetas?

Que legado vamos deixar às futuras gerações? Dando valor a quem não convém.

Sem saber distinguir entre o certo e o errado. Nessa marafunda em que vivemos atordoados.

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