Compactuar com algo errado não era de costume daquele senhor já idoso. Que um dia viu a mocidade se despedir. Sempre seguro da correção de seus atos. Poder-se-ia dizer honesto até o último pingo de suor que lhe escorria pela face crispada pelo sol ou o frescor das noites invernais. Considerado por aqueles que o conheciam como incapaz de lesar qualquer um.
Direito sempre. Desde o lado da cama em que dormia com sua amada esposa dona Rosa. Rosinha para os mais chegados. Que sempre foi a única dona de seu saltitante coração que sempre por ela tiquetaqueava desde a vez primeira que entrecruzaram os olhos numa estradinha vicinal pertinho da rocinha onde moravam. Ele, filho do meio de uma família guerreira sempre afeita aos trabalhos rurícolas. Já elazinha, filha única de pais separados há longos janeiros embora já estivéssemos no começo de junho. Um mês frio que não costuma chover no entanto ontem choveu o dia inteiro e bem cedo pela manhã já se podia ver a terra molhada antes seca e esturricada pelo tempo previsivelmente seco do pré inverno.
Seu Paulo e sua amada Rosinha. A princípio jovenzinhos. Ele aos doze anos e ela aos menos de dez. No dia em que se encontraram pela vez primeira assim que a meninazinha Rosinha a ele deu de olhos ambos olhares se cruzaram naquele momento mágico tanto quanto um mágico circense saca de sua cartola negra um coelho branquinho de olhos vermelhos assustado fazendo a meninada presente ao circo arregalarem os olhinhos de surpresa. Naquele átimo de segundos ambos perceberam que haviam nascido um para o outro.
O namorido em verdade começou numa quermesse durante uma festa junina organizada pelo pároco da velha igrejinha no intuito de amealhar recursos cuja finalidade precípua era refazer o telhado gasto por onde entravam gotas de chuva quando ela caía nos tempos de ver jabuticabas maduras na ponta dos galhos finos das jabuticabeiras.
A tal festa transcorreu em calmaria como águas tranquilas do mar vendo uma embarcação navegar sossegadamente sem nenhures a olhar. E nenhum golfinho ou peixe maior a saltitar.
O jovem Paulo. Ao reconhecer a linda Rosinha vestida num lindo vestido de chita. Prestes a entrar na dança da quadrilha, com seus lábios tintos num batom de tom vermelho meio rosado. Mal dissimulando o amor que dentro dele crescia tanto quanto um arbusto recém plantado em terra fértil. Quase uma árvore de rica copa como uma reles sibipiruna quebra passeio. Dela se aproximou timidamente pedindo-a para ser seu par.
E essa parceria continuou vida afora até no mais tardar nos tempos de agora quando a idade do casal soma a mais de duzentos anos de convivência amistosa que só o amor pode levar ao seu final.
Seu Paulo e Dona Rosinha não tiveram filhos. Era um para o outro e o outro vivia em função do um. Não se sabia bem quem seria o responsável pela falta de rebentos já que Paulo sempre teve a saúde em dia da mesma maneira a sua amada Rosinha sempre viveu castamente a espera da lua de mel.
Mas, como naqueles saudosos anos não se tinha o costume de se consultar com um especialista. Essa especialidade é a minha – Urologia. Não se sabia dizer se um dos parceiros (o do sexo masculino), seria portador de uma varicocele que porventura diminuísse a vitalidade dos espermatozoides tanto em números quanto em capacidade de correr e unzinho só entrar óvulo adentro e causar a tão sonhada gravidez. Tanto seu Paulo como dona Rosinha acabaram por não receberem a visita da sonhada cegonha nem ao menos fazer o enxovalzinho de cor azul ou cor de rosa.
Anos e anos se atropelavam sem causarem danos a qualquer um dos dois.
Mas, como nem tudo que brilha tem a cor de prata ou de lata polida, um dia dona Rosinha amanheceu tossindo uma tossezinha seca sem emitir esputo. E no terceiro dia acordou febril.
Seu Paulo não mostrou sinais de preocupação no começo. Mas com os dias de invernos se metamorfoseando em verões. A coisa mudou de figura. Como a sua amada Rosinha não mostrasse melhoras, embora um médico infrequente por aquelas bandas a houvesse medicado com antibióticos e remédios para amenizar-lhe a tosse.
Seu Paulo, recomendado por um vizinho de pasto, acabou levando sua amada esposa a um médico especialista em doenças pulmonares na cidade mais próxima. Que não era tão próxima como se imaginava. A velha jardineira, comendo poeira, exalando um odor forte de gasolina, acabou enguiçando de vez numa curva da encruzilhada. E foi preciso usar uma junta de bois para finar a longa viagem até chegar ao hospital onde dona Rosinha passou dez dias entre a vida e a morte cada vez pior.
Seu Paulo, religioso que sempre foi, de joelhos postados num banquinho de três pés que usava para tirar leite, a cada manhã orava pelo restabelecimento de sua amada Rosa.
Até fez promessa de ir ajoelhado até Aparecida do Norte fora de romarias.
Mas, como a idade nos prega peças, quanto mais velhos a nossa saúde pede socorro. A de dona Rosinha acabou levando-a a mudar de leito da enfermaria a uma unidade de saúde intensiva reservada aos pacientes mais graves.
E na roça Seu Paulo não sabia mais o que fazer. Rezar era preciso. Seus joelhos se tornaram feridas vivas. Seu rosto mostrava sinais de envelhecimento progressivo. Ele não mais exibia rugas na face. E sim sulcos como os arados puxados a bois de carro fazem na terra a fim da planta de roças de milho.
Num domingo, de madrugada, ao receber a notícia nada agradável que sua amada estava prestas a avoar aos céus, Seu Paulo fez um pacto de vida ou de morte.
Se a sua amada Rosa fosse de fato chamada a viver outra vida que não aquela ele partiria no dia seguinte. E com ela se juntaria ao lado de Deus Pai Nosso Senhor.
Era uma segunda feira quando dona Rosinha faleceu. Durante o sono seus olhos não mais se abriram. Morreu como um passarinho dormindo calminho em seu ninho protegendo seus filhotinhos.
No dia seguinte Seu Paulo foi sepultado na mesma cova de sua amada Rosinha. Os dois juntinhos, abraçadinhos, cercados de flores do campo. No mesmo caixão.
Aquele pacto de união que o padre diz no altar, no dia do casamento: “até que a morte os separe”. Foi cumprida à risca. Um exemplo que fica a nós todos.