Naquela tarde noite Juquinha levou uma tunda doída com uma vara de marmelo do seu pai.
Ele, sujeito de maus bofes, não pai genético e sim amasiado com sua sofrida mãe Manuela. Uma mulher que já foi bela na juventude ao se casar com seu falecido marido. Mas, depois de receber chicotadas na vida pós falecimento do pai verdadeiro do garotinho Juquinha dia, meses, anos após rodopiarem outros.
De tanto sofrer nas mãos não limpas do segundo marido. E como ela se arrependeu, num instante de desvario, de ter se casado com tal homem. Que nunca teve bom conceito entre aqueles que o conheciam de perto. Raimundão já fora preso não só por vadiagem como por tráfico de drogas, corrução de menores e outros delitos mais graves. E somente deixou a cadeia por pura sorte. Lá dentro disfarçava-se de preso com pseudo conduta exemplar por sempre, durante o banho de sol simular estar lendo o livro sagrado. Muito embora, ao revés, jamais ter lido um capítulo só do livro de Gênesis, ou Mateus. Ou tenha decifrado uma linha sequer, uma página perdida entre as tantas da Bíblia.
Juquinha, naquela tarde noite em que chegou a sua casa dez minutos mais tarde que era de seu costume. Não por estar em más companhias jogando bola no campinho de várzea nas proximidades da favela onde morava. Seu padrasto nele deixou marcas em forma de vergões em seus costados. E o garoto, bom aluno, deveras comportado. Considerado bom menino. Cujas notas eram sempre acima de oito. Inserido sempre no quadro de honra.
E a vida corria fora dos trilhos para a família do pobre menino.
Por sorte ele era filho único de sua mãe Manuela.
Do seu ventre nasceu apenas ele. “Ainda bem”. Dizia ela as suas parcas amigas.
Não se podia dizer que a mãe de Juquinha era empoderada. Que são mulheres cheias de tutano. Que empinam o nariz e dizem ser donas de seus próprios. Mulheres, como costumo dizer muito a frente dos seus tempos. Mas, por não ter estudos. Manuela mal concluiu o primeiro grau. Teve de parar de estudar para ajudar o pai a vender quitandas nos becos lúgubres de onde morava. E acabou se prostituindo aos doze anos quando um namoradinho a ela estuprou. Dizem, as bocas cujas línguas escancaram-se de fora que não foi estupro e sim sexo consentido. Mas não foi e sim sexo contra a sua vontade. Embuchada do menino Juquinha teve a sorte de se casar com seu verdadeiro pai. Que teve seu óbito decretado depois de um acidente de trabalho caindo de uma viga alta de uma obra em que estava trabalhando.
Foi quando o sofrimento maior tomou conta da infeliz Manuela.
Elazinha, num momento de desespero, ao tentar dar fim a própria vida. Se é que aquilo podia ser chamado de vida…, acabou juntando os trapos com o tal padrasto de Juquinha. O qual, logo na lua de mel mostrou seu verdadeiro descaracter. Um lobo mau na pele de cordeirinho.
A vida do menino Juquinha metamorfoseou-se num verdade inferno. Sempre lhe jogavam aos ombrinhos frágeis culpas maiores que ele não tinha. As surras se sucediam. As suas costas branquinhas eram a cada dia tintas de sangue e vermelhões imensos.
E o garoto sofria carregando sua cruz imerecida.
E ele, sempre às voltas com infortúnios diversos. Revoltado com a vida que levava. Com os maus tratos que era vítima.
Pensava se evadir de sua morada. Transformar-se em menino de rua. Sendo recebido nas ruas como pedinte. A vender balas num semáforo qualquer. Ou até mesmo ganhar alguns trocados limpando para brisas de carros parados num sinal luminoso qualquer.
Viver nas ruas talvez aos cães agrade mais do que as gentes. Viver, como cães viralatando soltos pelas praças e avenidas. Cavoucando sacos de lixo na intenção de comer algum resto ali depositado para mitigar a fome. Tanto de amor quanto para dar um basta ao ronronar do seu estômago vazio. Era talvez esta a sina do garoto Juquinha.
Eu sempre pensei que o melhor lugar para deixar nossos corpos cansados depois de um dia estafante de trabalho seria a cama de onde saí nesta linda segunda feira vinte e quatro de abril.
Em nosso abençoado lar. Entregues ao achego de nosso bem maior que se chama “família”.
Mas, no caso do garoto Juquinha. A quem lancei essa pergunta na manhã de hoje. Ao encontrá-lo fumando um cachimbinho de crack numa esquina de má fama.
“Menino. Você não deveria estar na escola nesta hora ainda cedo? 0u na sua casa em companhia de seus pais e irmãos? E você agora, nesta exata hora de dez pra meio dia, aqui está tentando fazer mais mal a sua pessoa com esta droga que vai levá-lo ao fim em poucos anos ou meses. Volta pra casa criança. Lá é o melhor lugar para ser feliz”.
Foi exatamente esta a resposta do menino sofrido, de nome por mim idealizado- Juquinha.
“Quer mesmo saber o que penso? Não será preciso pensar muito. O nosso lar. A casa onde moramos. Mesmo que seja num barraco dependurado num morro alto. Sujeitos a toda as sortes de calamidades por causa de uma tempestade que acabe soterrando nossa tosca morada e com ela sermos mais um corpo a ser velado num velório e enterrado numa cova rasa sem lenço ou documentos. Como indigentes e nossos restos mortais tenham um destino nobre a serem dissecados em mesas frias de mármore em aulas de anatomia no curso de medicina. Se quer mesmo saber qual o lugar melhor pra se morar eu digo. Deveria sim ser nossa casa. Onde encontraríamos a paz ao lado de nossos pais ou irmãos. Mas, no meu caso, e de muitos meninos e meninas que em casa não encontram o que anseiam. Ao revés, como eu só encontram ingratidão e palmadas desmerecidas. Eu acabei por morar na rua. Deveria sim. Em lares de verdade encontramos tudo aquilo que almejamos. Mas, para não me alongar tanto digo não a casas desestruturadas. Verdadeiros lares devem ser abençoados. Ali deveria reinar a paz e concórdia. No meu caso encontrei, nada mais, nada menos, que turbulências que fizeram do meu aviãozinho esta nave sem rumo. Sem prumo e sem destino. Vagabundeando pelas ruas da amargura. Como me encontro agora. Em conversa com o senhor. Que não sei quem é”.
É. Deveria sim. O lar, a casa onde moramos, o lugar melhor para retornar depois de um dia cheio de conquistas ou desilusões. Mas, no entanto, dos entre tantos, por vezes não é.