Pra muitos não existe isso.
Todos nós tivemos passado, presente, e vem depois, incertamente, o tão almejado futuro.
Eu mesmo já descrevi meu passado ali mesmo, naquela rua que se deixa ver pelos fundos. Naquela casa que passei a residir em companhia dos meus saudosos pais. Rua esta hoje radicalmente metamorfoseada. Onde quase mais não se veem Rodartes. Fora meu querido primo Luis Carlos do cartório herdado do seu pai tio Rui. Por sua vez, uma vez nas mãos sábias do meu avozinho Rodartino Rodarte, que emprestou seu nome a um prédio por meu pai edificado. Hoje fincado no quase começo daquela mesma rua. Logo depois da caixa d’água da Copasa. Que pra mim não deveria estar ali. Fincada naquele terreno assaz valorizado. Pois, ao revés de estar ocupando espaço no começo da rua que se chama Costa Pereira. Ser transportada a outro lugar. Quiçá na zona Norte ou mais ao Sul. E, no lote onde agora se mostra a caixa d’água a minha sugestão é- que tal inaugurarem um monumento onde a inscrição inspirada nas minhas crônicas matinais seria: rua dos Rodartes. Rodarte quer dizer rodar com arte. Arte esta que se manifesta nos meus escritos ou até mesmo nos registros de nascimentos ou casamentos que meu avô Rodartino deixava inscrito nos seus enormes cadernos de capas duras. Trazendo, nas linhas finais, a linda assinatura de sua filha mais idosa, minha mãe Rute Rodarte de Abreu. Abreu este que ela traz do meu pai.
Que tal deixar o passado legado ao olvido do esquecimento e tentar viver o presente antevendo tão somente aquilo que nos reserva o futuro incerto pra muitos. E acertado para outros?
Ainda me lembro daquele menininho de olhos clarinhos assim como clara lhe era a pele.
O nome que estava escrito no caderno de registro de nascimentos e óbitos do cartório do meu avô Rodartino era Pedrinho não sei de que. Era um menino de trejeitos delicados com sua linda pele de pêssego por madurar.
Pedrinho foi nascido num lar desestruturado. Onde o pai, trêbado, chegava à casa alugada, sem pagar aluguel, trocando as pernas e mal conseguindo fazer um três e jamais um quatro.
Pedrão era o seu nome primeiro. Os segundos ou terceiros não me recordo.
Truculento, mau caráter, ele batia na mãe de Pedrinho e não faltavam chineladas no lombo macio de sua irmãzinha Sulita. Na bunda do sofrido Pedrinho as varadas de vara de marmelo deixavam vergões vermelhões como o piso da cozinha feito de cimento batido tinto numa cor vermelha.
Pedrinho interrompeu os estudos na quarta série do primeiro degrau da escada que se chama educação. Ele, sofrendo bullying por tentar esconder sua feminilidade desde cedo e não ter sucesso. Era chamado, por seus colegas de incontáveis epítetos: veadinho, boyolinha, gayzinho, e outros títulos mais. Por tentar revidar aos xingos levava tundas de voltar pra casa de olho roxo e enormes vergões em suas costas lisas.
O infeliz não mais menino Pedro, aos quinze anos decidiu, por sua conta e riscos de giz, deixar sua casa. Num bairro insalubre e violento naquela cidade grande.
E foi morar no centro da capital paulista. Numa zona famosa por abrigar traficantes e usuários de droga em sua droga de vida se é que aquilo poderia ser chamado de vida.
Lá, na Cracolândia, viciados e traficantes se ajuntavam a fim de pitar maconha, ou encraquizarem-se fumando cachimbos lotados de pedras de crack.
Pedrinho, pensando equivocadamente se dar bem entre eles passou a ser aviãozinho no comércio de drogas pesadas como a cocaína e outros entorpecentes mais e mais poderosos que não só punham pra dormir um sono letárgico como transformava pessoas ditas normais em verdadeiros zumbis. Sem pedir bis ou repeteco.
E ali colheu anos novos e renovou contatos com gente que não prestava.
Pedrinho envelhecia a olheiras vistas. Aos vinteanos parecia ter quarenta e tantos.
Aos quarenta parecia ter o dobro daquela idade. Não tão velhusca assim.
Aos cinquenta caiu enfermo e não mais levantou de sua morada debaixo de um viaduto da praça da Sé. Mas não perdia a sua fé.
Aos sessenta foi internado compulsoriamente numa clínica onde se tratavam dependentes não independentes de drogas.
Ali faleceu, sem ver verterem lágrimas pelo canto dos olhos de parentes ou amigos que não tinha.
Na sua lápide quente. Num túmulo reservado aos indigentes sem lenços ou documentos, uma frase lapidar alguém deixou escrita: “aqui jaz o presente sem futuro”.
Não carece dizer que o nome dele era Pedrinho.