Como tem chovido esse final de ano.
Mais um Natal chuviscoso.
O céu tinge-se em cinza. Nada de o sol acordar.
Nas vezes que tenho ido a minha rocinha, na volta minha caminhoneta reluta em subir o morro. As rodas deslizam. Ela corcoveia tal e qual um cavalo bravio. Os freios relincham e não são usados. Ao tentar subir o morro empinado as tentativas são malogradas. E tenho de pedir ajuda ao meu amigo Roberto. Que com seu trator possante acaba arrastando minha caminhonete até o alto da subida.
De outras vezes deveria esperar o barro secar. A chuva serenar. O céu se colorir de azul. O sol aquecer a terra. E me permitir voltar aquele recanto que amo tanto. E ver de novo toda aquela paisagem que me remete ao paraíso. Rever velhos amigos. Apertar-lhes as mãos cascorentas. E lhes dizer o quanto aprecio aquelas pessoas boas. Sem elas estaríamos sujeitos a uma dieta asfáltica. Nós, cidadãos urbanos, que nem sabemos o porquê de o leite ser branco emerso de uma vaca preta. Deveríamos agradecer a eles a comida que não nos falta. Embora falte a tantos por aí.
Estamos às vésperas de um final de ano. Acordei num vinte e três. Amanhã será véspera de Natal.
As ruas nessa hora ainda estão vazias. Poucos passantes se deixam ver.
Eu, como sempre, madrugão, já me pus de pé.
Essa semana em curso estarei em recesso. Volto a trabalhar assim que o novo ano começa.
Dou-me o direito a um descanso. Meu descanso eterno tomara esteja longe de acontecer.
O prédio se mostra vazio. Não se vê vivalma por aqui.
Meu amigo Tonhão. Que nessa hora temprana deve estar ordenhando as vacas. Atolado no barro fresco à beira do curral. Não tem o costume de se queixar. Pra ele tudo é festa. Mesmo se a festa se resuma ao trabalho duro. Ao mourejar constante. Ele não se irrita mesmo se a sua melhor vaca atola no brejo. Ou se falta comida na despensa. Mas ele não dispensa uma pinguinha das boas. Não que seja um beberão inveterado. “Bebo sim, nas horas de folga!” Mas quem diz que ele as tem?
Tonhão não é de se apoquentar com poucas desgraças. Ele sorri até das que tem.
Pra ele azar é precedido pela sorte. Uma só vez jogou na loteria. Ganhou uma soma tão grande e logo a perdeu numa mesa de sinuca. Apostou que iria encaçapar a bola sete. E quem caiu foi justamente a branca. Num suicídio não desejado.
Tonhão não é de perder tempo em discussões infrutíferas. Aliás, a frutinha que ele mais gosta é de jabuticaba madurinha. Sobe no pé como um molequinho travesso. Se tropeça não cai. Levanta a cabeça e dá volta por cima.
Nunca o vi contrafeito. Ama o mal feito. E não faz desfeita a ninguém.
Um dia, véspera de Natal. Naquela azáfama de final de ano. Tonhão teve de dar um pulinho nanico à cidade. Faltava mantimentos na sua despensa. Justamente o arroz que mais apreciava. Feijão até que nem era tanto. Carne de porco ele guardava nas latas conservada em banha dele próprio.
Naquele furdunço todo Tonhão amarrou sua égua num poste de luz. Entrou num supermercado apinhado de gente contando as moedas. A soma mal chegava aos duzentos.
Na hora de pagar a caixa registradora acusou quase mais cem. Como fazer? Tonhão não esquentou a pioenta. Devolveu o excedente e pagou em espécie. E ainda deixou o troco a pobre moça embasbacada com tamanha gentileza.
“Gentileza atrai outra.” Tinha essa máxima consigo mesmo.
Uma vez do lado de fora da loja mais uma decepção o esperava.
“Cadê minha égua?” A Chegança não estava mais ali. Só não fez BO por não acreditar que na delegacia iriam crer na sua historinha. Como uma pessoinha da roça iria deixar uma égua atada a um poste? Fio de uma égua seria esse.
Mas ele amava tanto ela que não seria capaz de maldade tamanha. Tonhão tinha um coração bem maior que no seu peito cabia. Era incapaz de fazer mal a um mosquito. Mesmo se ele fosse vetor da dengue ou de uma tal chikungunya ( é assim que se escreve né?) .
Não bastasse tamanho infortúnio outras impropriedades o esperavam.
Quando entrou numa botica afanaram-lhe o embornal. Ali guardava o bem mais precioso que tinha. Uma medalhinha presente de sua mãezinha. A qual mantinha como amuleto de sorte. Que nunca lhe traria azar.
Correu atrás do larápio e acabou por alcançá-lo na próxima esquina. Mais uma vez deixou o dito pelo mal dito. E perdoou o mal feito do malfeitor.
De volta a sua rocinha. Ao final da tarde. Quase véspera de Natal.
Dei de encontro a ele.
Tonhão, como sempre sorridente. Apertou-me a mão desejando boas festas.
E eu quis saber como ele consegue viver daquele jeitinho todo especial. Sem se irritar. Sem se apoquentar com situações que causariam mal estar a todo mundo.
Tonhão não tinha o costume de perder tempo em querelas incontornáveis. Ele sempre dava a volta pelo outro lado.
Despedimo-nos com esse conselho dele próprio.
“Deixa o barro secar. Com ele seco você sobe o morro.”