Quase fechando o ano. Alguns dias apenas entra outro.
E eu aqui. De idade nova. Inaugurei setenta e cinco. Quando me olho no espelho me assusto.
Cadê aquelas melenas topetudas? Aquele bigodão da negritude da noite. Aquele olhar atento. Aquele ar compenetrado de quando graduado em medicina?
Anos se foram. Envelheci.
Não me encontro mais naquela idade jovem.
Cheio de ideais. Sonhando em encontrar um mundo pronto a receber novos esculápios.
Sonhava muito. Agora quase não sonho mais. A noite pra mim encurtou de tal maneira que quase não durmo mais.
Na idade em que me encontro não sei quantos anos mais me restam. Agradeço a saúde que ainda me acho. Algumas coisiquinhas me atormentam. O urinar durante a noite. Reluto em me deixar operar da próstata. Pois passei quase metade da minha vida profissional varando noites. Operando em três hospitais. Tendo de reoperar quando a cirurgia complicava. Até hoje tenho verdadeira ojeriza pelo telefone. Quando meu telefone andejo tilinta finjo que não ouço. Ainda bem que o número de quem chama aparece na telinha.
Estou à procura de mim mesmo. Aquele jovenzinho recém formado não existe mais. Em seu lugar renasce um velho ainda não aposentado por completo. Não tenho a pretensão de assim proceder tão cedo. Ainda me sinto útil. Pronto a escutar os queixumes. A operar quando a doença enseja.
Estou em busca de mim mesmo. Onde estaria aquele jovem sonhador? Ele deixou seu lugar a esse doutor escritor. Que descreve o cotidiano pelas madrugadas. A retratar esse ou aqueloutro causo que lhe inspira. Preocupado com a própria saúde não deixando a dos outros em segunda instância.
A procura de mim mesmo me encontro. Embora saiba que a vida me oferece tantos desencontros.
Procuro algo a cada dia. Mas acabo não encontrando nem a mim mesmo.
Mesmo assim não deixo de me procurar.
Aos sábados me encontro na minha rocinha encantada. Desvisto-me das vestes da cidade. Uso uma roupa surrada. Mudo meu vocabulário tão vasto. Troco palavras de difícil entendimento por outras de fácil entender. Ali me sinto a vontade. Pena que meu desejo de voltar aos verdes anos não seja possível.
Estou a procura do que fui há anos perdidos na lembrança. Por onde anda aquele menino de cabelos lourinhos? Aquela cabeleira clarinha que se deixava ver desapareceu no tempo.
Não encontro mais aquela velha casa onde morei há tempos idos. Em seu lugar nada mais resta senão saudades tantas. Daqui posso ver onde ela era. Pena que aquela rua mudou tanto.
Procuro-me em tantos lugares. Não me acho na maior parte deles. No jardim aqui pertinho ainda moleque me encontrava. Foi no rela do jardim que a encontrei. E fizemos um trato sob a forma de um contrato de casamento. Consorciamo-nos há tantos anos que nem me lembro a data. Não importa. O que conta é que ainda estamos juntos.
Procuro-me em tantos lugares. No céu ainda não estou. Um dia lá estarei juntinho aos meus pais.
Vou continuar a procura de mim mesmo. Agora me encontro aqui. No meu refúgio. A espera do primeiro paciente que me procure. Espero que ele me ache ainda disposto a continuar como médico especialista. Por quantos anos mais? Desconheço. Essa interrogação não a tenho em mãos; nem irei procurar saber.