Há dias venho pensando: quando a gente deixa de ser?
De ser criança quando a infância se vai ao longe.
Não mais somos jovens depois de nos tornarmos adultos.
A fase adulta se vai no momento exato quando passamos da idade da responsabilidade. Pois nos consideramos velhos no momento certo que nos comportamos tal e quais crianças. E podemos fazer lambanças que nossas artes serão perdoadas.
E a partir de quando não seremos mais?
Fica aqui essa celeuma.
A gente nasce, cresce, amadurecemos, apodrecemos, e nossos restos mortais, ou são incinerados. Ou soterrados sob sete palmos de terra.
Desaparecemos da face da terra.
Não pensem que somos insubstituíveis. Logo outros ocupam nosso lugar.
De momento deixamos nostalgia e saudades. No entanto, mesmo esses sentimentos serão esquecidos. Nosso lugar á mesa vai ser ocupado. Até mesmo na nossa cama vai ter alguém do outro lado. Nosso travesseiro, nosso cheiro, nossa toalha de banho, nosso shampoo preferido; tudo isso vai ser substituído. Já que ninguém tem seu lugar cativo. Ao pó voltaremos. A terra adubaremos. À Deus voltaremos. Daí não vale a pena guardar resentimentos. Desamor, rusgas, lamentos, tudo vai ter um destino igual. Em pouco tempo nada da gente restará. A não ser um período curto de saudade e lágrimas que irão secar.
Fiz um esforço hercúleo para me tornar médico especialista.
Acumulei anos e anos intermináveis de estudos e horas perdidas debruçadas nos livros.
O curso primário se perdeu nas lembranças. Sobreveio o ginásio. Dantes entrávamos no cientifico. Não era o último degrau da escada. Apenas um recomeço.
Mas nosso caminho continuava. Eu já havia elegido qual deles seguir.
Seria a difícil arte de tentar curar. Se não conseguisse pelo menos atenuar dores. Dissabores seria mais difícil. Já que se torna quase impossível entrar na mente humana.
A medicina foi minha escolha. Não tive sucesso na primeira tentativa. Mas retentei depois de um ano inteiro de estudos num cursinho preparatório ao vestibular.
Foram cinco anos de estudos na faculdade. Por sorte passei numa, de ótimo conceito, na capital do meu estado.
Foram anos doirados. Mas não parei por ai.
Carecia de me aperfeiçoar. Mais um pouquinho. Uma pedrinha encalhada no meio do caminho fez-me decidir por qual especialidade ir. A Urologia até hoje me acompanha. Em ritmo menor vamos de mãos dadas. Tenho por ela o maior chamego. Considero-a como minha esposa. Já a literatura faço dela minha amante amada.
Cinquenta anos são passados desde nossa colação de grau. Somam-se três desde quando me fiz especialista em rins e vias urinárias. Quantas próstatas já joguei no balde. Quantas pedras já retirei do meio do caminho. Perdi a conta de quantos pacientes que por aqui passaram. Quantos amigos já me apertaram a mão e me agradeceram o tratamento. Nem me lembro mais de quantas conquistas amontoei nestes meus quase setenta e cinco anos de vida. Penso ser ainda útil aos que me procuram. Na medicina pretendo continuar sine die.
Foi ontem o acontecido. Uma filha querida reclamou de uma dor em muito parecida a de uma pedrinha descendo pelo ureter. Uma dorzinha marota que a incomodava.
Ela não veio aqui. Simplesmente me ligou ao telefone.
“Pai. Estou com uma dor do lado. Parece ser um cálculo renal. O que tenho de fazer? Qual remédio tomar”?
Foi uma consulta sem poder examiná-la in loco. Apenas por informações de longe.
Indiquei um fármaco de minha confiança. E um exame de imagem que ela deveria fazer.
Dito e feito. Conforme minhas instruções.
A tomografia nada indicou de positivo. Nem o ultrassom.
Foi quando a elazinha propus o diagnóstico. Sem nem ao menos receber um tostão furado pela consulta.
Santo de casa não faz milagre. Nem burro velho tem direito a relinchar mais.
Foi quando minha filhota linda retrucou. Talvez pensando na minha indiferença a dor que ela sentia.
“Pai? Você ainda é médico”?
Olhei-me no espelho. No diploma dependurado na parede. Nos anos todos que se passaram desde minha colação de grau. Nos três de minha especialidade. No vestibular vencido. Nos cursos todos que fiz.
Foi essa a resposta que a ela dei: “penso que ainda sou. Até meu último suspiro. Até quando me procurarem e confiarem em mim aqui estarei dando o melhor de tudo que aprendi. E no dia em que não for, por favor. Não me perguntem jamais se ainda sou. Penso que nunca deixarei de ser”.