Quase acreditei

Em tempos antigos acreditava em tanta coisa, tantas, que acabei descrendo nos tempos de agora.

Atribuo, talvez à idade que espicha ano a ano, à experiência que os mesmos anos me fizeram acumular, às decepções que o correr dos anos mancharam-me a ingenuidade, aos falsos amigos nos quais acreditei, à descrença que hoje me atormenta.

Antes cria, piamente, na figura carismática do Papai Noel. Na véspera do Natal, dia no qual hoje pisamos, com pés mais seguros (no meu caso) e em outros claudicantes, ficava, o eu criança, ansioso por desembrulhar os presentes que o Papai Noel (sabia que era o meu pai), mas fingia que não, passava a noite em claro. Embora fosse, como todas as noites, uma noite escura com o céu polvilhado de estrelas vagalúmicas.

Ainda me lembro daquela bicicletinha de rodinhas brancas, a primeira que ganhei. Com que gáudio e alegria fui empurrando a minha primeira bike em direção à praça central!

Não sei se aquele foi o meu primeiro inchaço na testa ampla. Resultado de um tombo que ela me deu. Tempos depois retirei as mesmas rodinhas brancas. E aprendi a andar sozinho, depois que meu pai me ensinou a ter equilíbrio, mas bem sei que tempos depois fiquei um tanto desequilibrado, no limite tênue entre a sanidade e a louquice, que coisa boa é não viver continuamente, vida adiante, carregado de responsabilidade e zelo que um pai de família deve ter.

Deixando a infância para trás, nenhuminha alma impura pode ficar parado no tempo, sem envelhecer condignamente, hoje fica cada vez mais difícil, ou quase impossível viver como antigamente, as crenças e descrenças continuaram a sua notável trajetória dentro do meu eu.

Vou parar de nomear todas as minhas convicções e ambições, pois, caso ficasse aqui, proclamando cada uma, vocês se cansariam logo e não conseguiriam ir ao final da minha crônica.

Não sei se é de hoje o juízo que faço das pessoas. Se elas são boas, ruins, completamente ou em falta de algum substrato que as façam melhores do que eu.

Sou refém do prejulgar. Do juízo antecipado. De ver a cara de um, sem conhecer-lhe o âmago, e pensar, precipitadamente, sofregamente, se ele é um cara bom ou mau.

Sei que na maior parte das vezes erro nas lucubrações apressadas. Quem não erra não acerta. O papel de julgador é bem pago no poder judiciário. Quanto percebe, de salário, um juiz de vara superior? Um magistrado de conduta ilibada, um juiz como o famigerado e idolatrado Moro. Depois da operação Lava Jato?

Não sei precisar as cifras. Deve ser bem mais do que recebe de salário, quando pago em dia, um médico que milita na saúde pública. Sem poder fazer nada a não ser torcer para que a doença que acometeu tal paciente não seja nada de grave demais.

Mas onde quero chegar, quando titulei o meu texto de “quase acreditei”?

De tempos pra cá mudei muito a minha forma de pensar e agir.

Tenho procurado pensar a agir na mesma mão dos pensamentos.

Se um defeito tenho é ser transparente nos pensamentos e atitudes.

Quem escreve crônicas se deixa ver nas entranhas. O computador escrevinhador escreve o que jorra aos borbotões o que me passarinha pelas ideias fecundas. Como a terra fértil da minha roça. Agora em mãos expertas de um amigo.

Quando aqui aportei, vindo das terras de Espanha, sem ter assistido as touradas de Madri, era tido como orgulhoso e afoito. Uma aura de metideza fazia um círculo imaginário que me rodeava a cabeça. As diligentes enfermeiras com quem me cruzava nos corredores dos hospitais não me tinham em bom conceito. Com elas concordo. Eu era mesmo assim.

Depois, com o tempo aparando-me os defeitos, quem não os tem?, fui-me docilizando, humanizando-me, até chegar ao estado onde me situo.

Hoje, quase aos setenta anos, acabei me descobrindo outra vez criança. Aquela mesma da bicicletinha de rodinha branca, a qual retirei depois de um empurrãozinho que me deu meu pai.

Agora, quando ando pelas ruas, sempre usando os pés e as pernas, com o corpo inteiro a cavaleiro, não passo por quase ninguém, seja estranho, ou conhecido fresco, sem um bom dia, um até logo, bom trabalho ou bom descanso, qualquer saudação espontânea, como eu passei a ser.

Não sei se ontem, trasanteontem, um dia qualquer, lindo como hoje, véspera de Natal, ao passar por um barzinho, onde nunca parei a não ser para um breve bom dia, ao proprietário feliz por ser quem é, na sua singeleza singela, ele me parou, puxado que fui pela camisa e me pediu um minutinho de atenção.

“Doutor Paulo, por favor, me escute. Ao desejar-lhe votos de boas festas e feliz ano novo, quero deixar a minha impressão do senhor. Não perca a simplicidade nunca. Conserve o seu bom humor. Não deixe a humildade trancada na gaveta do criado mudo. Continue a ser quem é: uma boa pessoa, afável e gentil. Nunca deixe o ex- médico que retornou do velho continente vestir a roupa branca um tanto encardida que antes usava. Como turvo lhe era o humor. Seja este novo doutor-meu amigo. Que sempre carrega consigo uma criança que jamais vai morrer, dentro desse corpo forte, que Deus o conserve assim”.

Deixei o jovem do barzinho simpático entregue a sua faina diária. Feliz da vida, comprometido com a boa educação dos filhos, da esposa, da pequena família que nem imagino quantos serão.

Hoje, vinte e quatro de dezembro, na próxima segunda feira viajo em férias a Portugal.

Talvez encontre naquele país amigo, nosso descobridor, mais um naco do meu passado. Do qual nunca irei me apartar.

Ao ouvir aquela observação, não sei se pertinente ou não, daquele jovem do bar, não sei se nela devo acreditar.

Qual a opinião de vocês, sim ou não? Se não importa a vocês, a mim conta, demais…

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