Hoje cedo, ao olhar por entre as nuvens, tentei confabular com as estrelas e não consegui

Foi assim que acordou um menino da roça, sonhador, meio poeta, metade dele escritor, na doçura ingênua dos seus oito anos, naquele dia lindo, céu azul, havia chovido a noite anterior, uma frescura lírica assoprava o ar, o verde ao derredor parecia ter sido pintado com todas as tonalidades de verde, dia este que, se fosse eleger um dia especial para morrer, por certo seria outro, de qualidade inferior.

Foi quando pensei cá comigo, antes de voltar ao nosso conto.

Existem dias melhores do que os demais? Dias especiais?

Ou estes dias melhores seriam aqueles que a gente sentisse dentro do peito uma alegria nascida do nada, simplesmente ao ver o sorriso de uma criança novinha sugando as tetas da mãe. Ou aqueloutro dia quando a nossa mãe, ainda viva, nos depositasse um beijo carinhoso, em nossa testa ainda com cabelos fartos, e nos desejasse um dia feliz, como de fato aconteceu comigo num dia longe que ainda carrego dentro quando ela faltou a mim. Naquela tarde triste, quando a levei ao hospital e ela nunca mais saiu. Em vida.

O dia quando se passa a minha história era um dia como o de hoje: 23 de dezembro, antevéspera de Natal. A noite antes se podia ver e sentir na janela do meu quarto os pingos de chuva que teimavam entrar para dentro de casa e as paredes, o telhado bem feito, a janela bem vedada, não permitiam aos pingos de chuva entrar sem serem convidados ao calor da intimidade do meu lar.

O nosso meninozinho da roça, bom menino, aplicado ao português, aos números pedia distância segura, embora fosse estudioso em qualquer matéria, além de estudioso ajudava ao pai, lavrador, em todas as tarefas desde a lida com o gado, ao cuidado com as galinhas que viviam soltas por todo lado, botando em lugares os menos presumíveis, aos porquinhos sempre famintos que seriam banqueteados (o mais gordinho) na ceia de Natal daquele ano de 2017, tirando um tempinho minguado, pois não faltava a nenhuma aula naquela escolinha rural que um dia se mudou pra cidade, para escrevinhar poesias naquele caderno de pautas alinhadas que recebera de presente de um tio funcionário de uma biblioteca na cidade grande.

Seus poemas tinham dentro deles a ingenuidade e a doçura daquela criança feliz, que tinha dentro de si instantes de infelicidade entremeados de melancolia e tristeza inexplicável. Coisa de poeta, ou de gente dotada de farta sensibilidade.

Dois deles pude ler, num dia quando passei por ali.

“Se as coisas são inatingíveis… ora!

Não é motivo para não querê-las…

Que tristes os caminhos, se não fora

A presença distante das estrelas.

Já o segundo dizia:

“Quantas vezes a gente, em busca da ventura,

Procede tal e qual o avozinho infeliz:

Em vão, por toda parte, os óculos procura

Tendo-os na ponta do nariz”.

Estes versos não são do menino da roça. E sim de um poeta maiúsculo, embora de diminuta estatura – Mario Quintana

Erivelto, era esse o nome do menino, que não queria definitivamente crescer, contrariando seu desidério acabou crescendo, um dia, perto.

Tinha de encontrar seu rumo. Já que na roça onde vivia a poetar, a renda mal dava para os pais, ele teria de se virar longe dali.

Aos dezesseis anos, completos naquele ano de dois mil e vinte e quatro, embarcou no caminhão leiteiro, levando às costas, dentro da mochila verde, da cor da esperança, aquele seu caderninho, já bem gordinho, com mais de mil poesias as mais fecundas que já pude ler.

Eram pérolas inspiradas, que bem retratavam a lida na roça, além de lembranças do seu tempo de criança, apesar de guardar dentro dele uma alminha da cor da anilina que colore os tecidos de azul, no esplendor dos seus dezesseis poucos anos.

O que fazer na cidade? Não tinha profissão definida.  Sonhador, poeta, escritor, não eram consideradas especialidades profissionais das quais pudesse tirar dinheiro.

Desembarcou da carroceria do caminhão leiteiro depois de sentida despedida do condutor, amigo velho, de idade velha.

Na mochila da cor da esperança trazia a importância desimportante de cem reais. Era pouco, muito pouco, frente às necessidades que o esperavam.

A primeira noite passou num albergue modesto. Era uma espécie de creche, entidade que acolhia crianças desamparadas pelos pais.

Na manhã seguinte, como não podia ficar ali, tinha de deixar a hospitalidade das pessoas boas que o acolheram como filho, que não era, tentou se empregar numa loja de sapatos.

Ali não encontrou guarida. Embora fosse época de empregos temporários, por causa das compras de final de ano.

Bateu na segunda porta. Era uma farmácia popular. Da mesma forma foi mandado a outro lugar por não ter experiência na venda de remédios. Nem idade para tal desempenho profissional.

E foi assim, de loja em loja, tentando vender seu peixe, apesar de não saber pescar.

Ao fim do dia, com sono, faminto, voltou à mesma creche da noite anterior, encontrando-a de portas fechadas. Era dia vinte e quatro de dezembro. Um dia antes da confraternização das famílias em volta de uma mesa farta. Que não lhe era o caso.

Dia vinte e cinco perambulou pelas ruas desertas. Era quase madrugada.

Foi quando Erivelto, triste, melancólico, olhando em direção ao céu negro, recheado de estrelas piscantes, quais vagalumes noctívagos, era quase cinco horas da manhã, o sol já acordava do seu sono quente, o não mais menino Erivelto, desiludido com tudo e com todos, olhou pro céu por entre as nuvens, tentou confabular com as estrelas, e não conseguiu.

Agora, oito horas e poucos minutos depois, ao terminar esse texto, inspirado no mesmo menino que fui, olho em direção ao céu, tinto de azul claro, com o sol brilhando forte, não como a luz dos vagalumes que não conseguem olhar sem um tapa olhos dada à claridade da luz solar, por que não me chamar Erivelto, pois sou, como ele, o mesmo menino sonhador, sem ser poeta, embora na distante idade de sessenta e sete anos bem vividos…

 

 

 

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