Nos dias que se sucedem sinto cheiro de despedida

Hoje foi o último dia de atendimento no Ambulatório Médico de Especialidades (AME).  Para quem não sabe fica na zona norte da cidade, nas proximidades de um supermercado, e de cara no portão do Estádio Municipal Coronel Juventino Dias de Souza, nome pomposo para um campinho de várzea, mais parecido a uma calva luzidia onde um cirurgião plástico de incompetência comprovada fez pelo SUS um implante horroroso, moita a moita, a exemplo do cabelo de boneca, onde animados atletas de fim de semana fazem peladas aos sábados e domingos, também conhecido por campo do Fabril Esporte Clube.

A derradeira paciente, uma morena escura, roliça, simpaticíssima, presa de cruel ansiedade, depois de uma espera de poucos minutos mostrou-me seus exames.

Ela, ainda jovem, era portadora de cálculos nos dois rins, perda de função irremediável de um deles, que deveria ser retirado com urgência. O rim ainda funcionante mostrava angústia marcante para se ver livre de mais outras pedras alojadas ali.  Desde tempos antes, dos últimos carnavais.

O que pude fazer, além de desejar a ela boa sorte, que o ano novo lhe fosse mais propício, mais saúde, se fosse possível, preencher o papel próprio ao encaminhamento para tratamento fora do domicílio, explicar-lhe docemente, dentro do tempo premente, as dificuldades todas que lhe assaltariam pelo caminho. E que a Secretaria Municipal de Saúde de Lavras acolhesse com presteza e delicadeza seus anseios de cidadã contribuinte para a previdência social cada vez mais falida.

À saída ela se despediu de mim com um bem-vindo : “Muito obrigado doutor”, como se eu, um especialista em rim e vias urinárias, incompetente para resolver um milésimo das queixas que ali me procuram, tivesse feito algo importante, como é relevante o estado de saúde dos pacientes advindos do SUS.

A nossa despedida foi carinhosa. Como aconteceu quando me despedi das amigas enfermeiras daquele local de trabalho, prédio bem conservado, que de vez em quando deixa alguns pingos de chuva despencarem do seu telhado roto.

A seguir, como de hábito, depois de espera pacienciosa no ponto de ônibus da Autotrans, em conversa que em muito contribui para quem sabe pescar, ou pensa ser pescador, aprendi como fazer uma ceva de peixe num lago de águas plácidas, como exemplo cito a represa do Funil. Seu Anísio, que mora pertinho de ali, tomou o ônibus junto a mim. Ele também tem aquela carteirinha especial, que sempre levo na carteira, em uma das suas repartições, que me faculta usar o transporte coletivo graciosamente, para os que completaram mais de 65 anos.

Despedimo-nos como velhos amigos, que de fato nos tornamos. Ele parou num banco do centro, decerto para receber o minguado pago pelos anos todos de serviços prestados a um país que insiste em renegar seus idosos.

Continuei a minha viagem curta, já que depois do Natal, no dia vinte e seis de dezembro, parto para Portugal, em busca de minhas origens, numa viagem de férias que se estenderão ao próximo dia 7 de janeiro do ano vindouro, conduzido por um motorista experto na arte de ser amistoso e bom condutor de transporte coletivo. Seu nome é Geraldo.

Quando ali estou, à espera da condução, muitos podem dizer : “Por que você não vai de carro próprio, não sabe mais dirigir”? Mostro a panturrilha forte, como inhame duro e pedrado, faço troça com quem me inquiriu, e o convido a correr cinquenta quilômetros como no derradeiro domingo, quando cometi a insanidade de ir de Ijaci à Ibituruna, quase fiquei na rodoviária de Bom Sucesso e tomei o ônibus para Lavras de volta.

Hoje, dia 22 de dezembro, na boca aberta do Natal, foi o alegre Geraldo que me conduziu de volta a minha morada, numa parada perto da Praça dos Trabalhadores, já na zona Sul da cidade.

Mais uma vez apeei do ônibus do Geraldo sentindo no hálito quente do dia o sabor amargo das despedidas. E da saudade antecipada.

Não poderia me olvidar de outros usuários do transporte coletivo da Autotrans.

No banco de trás estava assentado outro paciente em potencial. Um senhor de mais idade que a minha, não seriam tantos anos assim, que, alegremente reconheceu em mim o médico especialista em urologia, já que ele foi operado de um câncer na próstata, e acabamos nos despedindo com um amistoso até breve, feliz Natal um próspero ano bom.

Do meu lado assentou-se comodamente outro senhor idoso.

Seu nome era Pedro, ou seria João?

Ao perguntar-lhe a idade ele respondeu, quase caí do banco, de sua boca com a dentição perfeita, que ele tinha quase noventa anos. E ainda trabalhava em sua pequena propriedade, no município de Ingaí, capinando ou roçando pasto, ordenhando vacas e alimentando porcos, além de tratar das galinhas caipiras, colhendo ovos, investigando os ninhos, pondo-as a salvo dos gambás e pilhadores de pintos.

Já era hora de saltar do veículo branco e rosa, que exibia na lateral o nome da empresa – Autotrans.

Deixei os companheiros de jornada, pela cidade de Lavras, que iriam deixar a condução mais adiante, com um até breve, ou até o ano que vem.

Agora, na parte da tarde, penúltimo dia de trabalho do ano em curso, no conforto da minha poltrona giratória de médico, penso não apenas na moça que me procurou no ambulatório do AME, com os dois rins afetados com gravidade por pedras enormes, ansiosa pela saúde dos seus órgãos chaves no bem estar do corpo inteiro.

Teria ela a boa sorte que lhe desejei?  Os seus rins seriam salvos da desgraça de uma hemodiálise tampão? O Sistema Único de Saúde daria conta de pelo menos atenuar-lhe a desdita? A quem a encaminhei, já que os procedimentos indicados estavam fora da alçada de aqui da minha comunidade, estariam dispostos a retirar-lhe os cálculos renais? Seu fim seria um transplante de órgão?

Afinal, finalmente, antes que o ano acabe, ou que quem acaba acabando seremos nós, esculápios que ainda têm de trabalhar mesmo em idade avançada, não podem parar, nunca, ao me despedir, neste ano, daquela moça negra dos cálculos renais enormes, bilaterais, e daqueloutras enfermeiras dedicadas espalhadas por todas as partes, ao me dirigir ao ponto de ônibus da zona norte da cidade, da minha querida Lavras, senti, ressenti, dentro do peito, bem cá no fundo da alma, um gostinho amaro de despedida e de saudade de todos vocês.

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