O ano andou de pernas trôpegas para o nosso amigo da roça.
Choveu menos do que deveria. As minas secaram. A pastaria, formada com todo esmero nas últimas águas, foi toda tomada pelas pragas, que mais fortes que o capim que ali deveria nascer, sobrepujaram os fiapos de capim mombaça, e acabaram por infestar o verde lindo com as cores desfolhadas de beleza, que os talinhos da cigarrinha (Mahanarva Fimbriolata) logo puseram as manguinhas de fora.
A roça de milho, cujas sementes custaram os olhos e ouvidos da cara, não cresceu a contento. Ao revés, dada a estiagem quando da planta do milho, no mês de novembro seco, céu azul, quente, as águas caídas do céu não deram o ar de sua graça e as terras carentes do líquido miraculoso que vem do alto acabaram se tornando um cenário inóspito ao desenvolvimento de qualquer sementinha que naquela terra arada fosse inserida ao ventre sequioso de chuva, de onde deveria brotar não apenas a esperança, assim como a roça de milho verdinha, que mais tarde, meses depois, iria servir de comida às vacas e as famílias boas que ali tinham não apenas o umbigo enterrado assim como o coração.
Aquela era uma roça arrendada a um médico urologista, que, cansado de fazer de conta que era fazendeiro acabou se cansando dos prejuízos que os incontáveis retireiros a ele deixaram como herança indesejada.
Bem que ele, eu, tentei, durante os mais de trinta anos de tentativas vãs, embora adorasse os ares do campo e o sabor de terra molhada dos vizinhos de pasto, amava apertar e trocar um dedo de prosa com aquelas mãos caludas, emersas de pessoas singelas que sabem mais do que aparentam saber, mas o tempo me fez concluir que roça só pode dar lucro aos olhos do dono. Não a quem fica de longe pensando que a vaca deu cria, e, no entanto, a parturição está longe de acontecer.
Há coisa de três anos passei o bastão da terra, das minhas vacas, das minhas galinhas caipiras, dos meus bezerrinhos bicolores, dos meus dois cavalos ali nascidos, do achego da minha casa amarelazul, da outra casinha rústica onde antes moravam os meus retireiros, foram tantos que nem me recordo quantos, a um caboclo valente, acostumado a levar cascavel na canela, a manejar um trator como eu tento tratar com dedos treinados o bisturi, a identificar a vaca boa de leite da maninha, a tratar com mãos ásperas e acostumadas à lida da enxada, ou da moto-serra, ou da roçadeira de pasto, a remendar cercas caídas pela ação inclemente do tempo e das mudanças intermináveis de humor do mesmo tempo, a acordar antes de o sol nascer, a ordenhar as lindas vacas leiteiras, com os filhotes aos pés, a encher o tanque de expansão inserindo dentro dele o produto da ordenha da manhã, fazer tudo isso na parte da tarde, voltar ao pasto para tirar dele as pragas, alimentar os porcos grunhentos e as galinhas ciscantes, a replantar as mudinhas de eucalipto que foram devoradas pelas formigas que cortam tudo que vêem pela frente, menos a valentia do caboclo valente, e, quando pensamos nós, da cidade, que ele vai descansar, finalmente, aparece uma vaca, a melhor do curral, que, na iminência de despejar a cria ela entala no caminho da saída, e o pobre exausto trabalhador rural tem de fazer às vezes de obstetra, tirando de dentro do útero o concepto que iria nascer ao revés, e desvirar a bezerrinha linda que fatalmente nasceria morta, não fosse pela oportuna intervenção do meu amigo arrendador dos meus sonhos que seriam apenas sonhos não fosse as suas mãos cuidadoras, nas quais deposito o melhor dos meus sentimentos.
Foi aquele, para o Roberto e sua amada esposa, dona Lúcia, o esteio firme onde ele amarra a sua fé, o meu esteio se chama Rosa, que aluguei a minha rocinha antes prejuizenta.
Fizemos um contrato de entre amigos. Não pusemos no papel a firma reconhecida de um cartório da cidade. E sim as nossas assinaturas, a minha em letras de médico, a dele com traços firmes de quem não tem o costume de escrever, e sim o hábito saudável de honrar os compromissos.
Já se passaram mais de três anos que nosso acórdão tem sido cumprido. Recebo o combinado pelo aluguel todo dia vinte de cada mês. Quando ele recebe o pago do leite. Que por vezes não cobre as despesas com o manejo das vacas, mal dá para pagar as sementes da roça de milho, aquela que não foi a bom termo por culpa da estiagem prolongada, das chuvas que caíram em excesso, das moscas que importunaram as vacas.
Não tenho feito caso do capítulo do contrato de locação que fala do reajuste anual que a gleba de terra, agora em suas mãos caprichosas deve sofrer. Para mim não importa aquele percentil estampado em letrinhas miúdas, mas que ali consta. O que importa, para mim, o arrendador, é ver, aos sábados, a alegria que o parceiro Roberto e sua admirável esposa, depositam naquele pedaço de chão, antes sujo e mal cuidado, antes recheado de vacas com costelas à mostra, que morriam de inanição nas mãos descuidadas dos outros cuidadores de vacas que quase sempre me deixavam e a elas na mão.
Hoje, como não consigo ficar longe de lá, para não perder o contato fraterno com as gentes da roça, para não perder o costume de trocar com eles um dedo de prosa, de aprender que sabedoria não se aprende nos bancos das faculdades, e sim com os ensinamentos absorvidos nos bancos da vida, para isso basta abrir os olhos, e ficar com eles atentos, como minha casa amarelazul, onde passei poucas noites sozinho, naquela cama sem o mesmo conforto da minha da cidade, em companhia apenas dos meus pensamentos avoantes como os pirilampos avoam, como as garças brancas sobem e descem do céu em busca dos seus pescados, estou construindo uma casa beira- lago.
É ali, olhando as águas plácidas, barrentas da estação chuvosa, que desejo passar meus derradeiros dias. Ou escrevendo mais um romance, quem sabe sobre a minha própria vida. Ou simplesmente sofismando sobre quem seria eu: um médico que escreve tanto, um sonhador que viaja sem deixar o lugar, um fazendeiro que não deu certo, um corredor que conta o currículo da corrida e deixa o leitor à vontade, como se participasse ele mesmo dos muitos quilômetros percorridos; um reles contador de causos de roça, das pessoas boas que ali mourejam sem parar, ou simplesmente uma pessoa letrada, que na roça troca o erre por esquecimento, que passou o bastão do seu sonho descolorido a um amigo, que entende não apenas de vaca, como também dono de um saco cheio de responsabilidade, cada vez mais incomum aos que vivem na cidade.
É ali, naquela casinha tosca, que vai olhar a represa do alto, onde pretendo receber os amigos, gente simples do lugar, para um cafezinho magro, por sorte no rabo do fogão a lenha ainda tenha uma sobra daquela broa de milho, receita de minha avó, prosear sobre causos de assombração, de mula- sem- cabeça ou da taturana que sapecou a palma fina da minha mão de menino, que desejo, antes que Deus me chame para reencontrar meus pais, e tanta gente querida que já nos deixou passar meus últimos dias na paz do Senhor, meu Deus, meu pai.
Sei que estamos prestes a fechar os olhos desesperançosos de mais um ano. Sei que as festas de Natal também irão passar. Sei que o final de ano vai, da mesma forma, passar também. Bem como sei que nós passaremos da mesma maneira que o Natal, o ano, as pessoas passam. Até a uva vira passa. Como as esperanças nos acenam com um adeus.
O ano que respira pela última vez na virada de dois mil e dezesseis para dois mil e dezessete será o fim?
Como bom sonhador, esperançoso que sou, espero que este fim seja apenas o recomeço.