“Onde amarrei minha égua”?

A azáfama de fim de anos por vezes incomoda.

Ruas lotadas, gente perambulando a esmo pelos passeios, levando sacolas nas dobras dos cotovelos, proseando naqueles espaços apertados (entenda-se passeios ou calçadas), impedindo quem tem pressa de chegar ao seu destino, compras de última hora a fazer, conta no banco estourada, fatura de cartão de crédito com saldo devedor, e outros dissabores tantos que quem nada tem com isso deve passar, a contragosto.

Eu mesmo, que nunca compro nada supérfluo, penso ter mais do que mereço, muito mais, para os aparentados apenas uma lembrancinha saída da loja de um e noventa e nove, no máximo cinco reais, isso quando estou de bem com a vida, com o bolso em paz. O que quase nunca acontece.

Ando pelas calçadas com a velocidade de notícia ruim. Se fosse possível correr, com as ruas apinhadas de gente, eu assim o faria. Mas, na primeira esquina, na curva de um passeio, levaria uma bolsada, ou coisa pior, na região afeita a minha especialidade, a Urologia. O que me levaria a procurar outro especialista, consulta quase impossível nos dias que antecedem as festas de fim de ano.

O fato acontecido, podem crer, é a mais pura expressão da verdade, não fruto da minha mente viajante, que cria ficção em quase tudo que meto os olhos inquiridores.

Zé da Égua, não fui informado do seu exato sobrenome, dele só conheci o apelido, teve a primeira noite no pasto, com sua égua especialista em se deixar montar em riba de um cupinzeiro morto há mais de trintanos.

Ele nasceu baixinho como pintor de rodapé nanico. Pela fita métrica de sua tia costureira famosa, de nome Rosa, esposa de um urologista escritor de nome Paulo Rodarte marido da dona Rosa, o tal artefato falho de medida nunca passou dos um metro e trinta centímetros de lonjura entre o dedão do pé e a calva luzidia como um besouro de asas negras como piche escuro.

Zezinho tirava leite espremendo as tetas das vacas sem precisar daquele banquinho baixinho de uso restrito aos sofredores retireiros, que não dispõem de ordenhadeira ou coisa de mais valia.

A princípio, das vacas tatu-com-cobra, conseguia delas tirar minguados cinquenta litros de leite. Que mal davam para as despesas. Nunca chegou aos cem, pois não tinha vacas solteiras para compensar o desmame, de novo prenharem e despejar novas criaturinhas no curral na estação seguinte.

O caso de amor entre Zé da Égua Pampa e sua égua cupinzeira dura até hoje. Trata-se de um amor verdadeiro, não uma paixão inconsequente que não resiste ao peso da idade, às rugas que agora passarinham a face, aos olhos que perderam o viço.

Um dia, quase véspera de Natal, o pobre Zé foi à cidade.

Por ser perto, foi montado na mesma égua pampa, sua paixão desde novinho, sua primeira monta de cama (ou de cupim), com quem perdeu a virgindade.

Sobre sua amada equina debruçou uma linda sela prateada. Uma que havia comprado no Natal do ano passado, e nunca usou, escondeu-a debaixo da cama, por medo dos ratos famintos a devorarem na ceia do final de ano.

Ficou lindo o casal de apaixonados.

Zé, com sua roupa domingueira, com seu chapéu de abas largas que lhe custou toda a renda paupérrima que o leite lhe dava um mês inteiro, com sua camisa listrada em cores berrantes, com sua bota de cano alto, aquela que lhe incomodava a joanete, com sua calça rancheira que comprou vinda de contrabando do Paraguai da Vinte e Cinco de Março.

Assim que aportou no porto inseguro da cidade de porte médio, que se chamava Lavras, encontrou a rua principal lotada de gente de toda parte.

A tal avenida, que vai da estação ferroviária à rodoviária, mais parecia um enxame de abelha a procura do favo de mel.

Era gente cuspindo gente. Pessoas indo e voltando, todas ensacoladas.

Não se podia caminhar sem esbarrões e cotoveladas.

Por sorte reforçaram o policiamento.  Em cada esquina uma dupla de Cosme e Damião. Mais Cosmes que Damioas.

Assim que chegou à praça principal, de nome Augusto Silva, um lindo jardim onde antes ali se encontravam os pretensos namorados, no rela do jardim, um pra lá, outro pra cá, foi assim que conheci e me encantei com a minha Rosa, onde tudo começou com um inocente flerte, depois velo o casamento, Zé da Égua amarrou a sua amante.

Foi numa linda árvore símbolo da cidade dos ipês e das escolas, a notável mais que centenária Tipuana, que Zé amarrou sua égua. Pensando ali estar em segurança.

Eram dez da manhã, de uma manhã sorridente, quando o roceiro foi fazer umas comprinhas.

Levava na algibeira da calça rancheira uma soma de quase cinco mil reais. Importância para ele resultado das economias da vida inteira, desde quando perdeu os pais.

Aos trancos e esbarroes conseguir ir e vir naquela rua que sobe ou desce.

Comprou de presente para si mesmo um par de cuecas novas, de marca Zorba, em liquidação nas lojas Americanas (onde não se fala o inglês), dois vinhos de marca não ilibada, que por certo iriam dar-lhe uma baita ressaca, e duas dúzias de ovos da Páscoa, em preço de banana por estarem fora de época.

Ao voltar pelo mesmo passeio, sem asseio, cheio de buracos e poças de água salobra, quando chegou à praça onde havia amarrado o grande amor de sua vidinha insossa, a égua pampa, não a encontrou atada à velhusca Tipuana.

Foi com estrondosa surpresa que berrou à plenos alvéolos: “Onde está você, minha querida”?

Os circunstantes, entre apreensivos e condoídos pelo desespero daquela pessoa vestida em trajes rurais, que tanto poderia ser um peão ou um retireiro chiquê, logo se puseram em seu socorro.

O socorro ao Zé da Égua, apaixonado por seu animal de sela, veio tarde demais.

De nada adiantou o BO, feito de imediato.

Quando a polícia descobriu o paradeiro da égua do Zé ela já tinha virado salame, no matadouro de uma cidade vizinha, de nome Campo Belo.

Depois do acontecido recomendo, a todo que passaram os olhos neste escrito: “Cuidado ao amarrar sua égua, sua esposa, ou namorada. As árvores de hoje não são esteios seguros, como minha doce e amada Rosa”…

 

 

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