Aquela pobre pombinha trôpega

Hoje eu vi, durante a minha descida pela rua em direção ao consultório, perto de uma das lojas que em época de Natal se enchem de gente, uma pombinha branca e cinzenta, frágil como uma folha de papel deitada sob uma tempestade, prestes a levantar vôo, manquitolando pela calçada, quase não conseguindo beliscar as migalhas de um resto de farelo de pão que algum descuidado deixou cair quando na agitação de final de ano.

Precisei ter cautela  redobrada para não passar por cima daquela Columbidae claudicante. Ela esboçou vôo. Não teve sucesso. Não suportou bicar, com seu bico listrado com as mesmas cores do seu corpicho emplumado, os restos de comida que gostaria de saborear. Passei pela pombinha quase branca desejando-lhe paz. A paz tão sonhada com que todos pensam ter, sobremodo no ano novo que em breve alça vôo, que o mesmo vôo não seja abortado como o da pombinha trôpega que de pouco deixei na calçada, perto de uma loja de departamentos, tentando se alimentar dos restos das sobras, de um pão esquecido por uma pessoa que não tem o cuidado de jogar o lixo no lixo, e não o leva a casa, como os japoneses fazem.

Agora, pouco mais de sete horas, de uma manhã fresquinha, a temperatura lá fora se deixa marcar no relógio perto da igreja matriz exatos quinze graus Celsius, mas parece, pelo vento norte que assopra, bem menos, na tepidez da sala aconchegante onde escrevo, antes que as consultas apareçam, são poucas nessa época do ano, repenso na pombinha vacilante que tentava voar, e não conseguia.

Qual seria o destino da pobre pombinha quase branca? Será que ela vai sobreviver até o ano que vem? Ela vai passar fome? Ou alguma necessidade maior? Ou será que alguma outra pombinha caridosa, um macho, seria ela uma fêmea?, por ela se apaixonasse e a levaria a casa dos pombos, algum lugar escondido num telhado qualquer?

Tempos, minutos depois fiquei a matutar com meus senões qual seria o futuro da pobre pombinha trôpega que deixei na calçada perto de uma grande loja de eletrodomésticos, durante a minha descida rumo aonde estou.

Noutro dia, não sei bem quando foi, se neste ano, ou noutro mais longe, durante a espera por um ônibus na zona norte da cidade, depois de atender a pessoas na minha especialidade de Urologia, num ambulatório patrocinado pela prefeitura de minha cidade, iguais a este perambulam muitos sem conseguir fazer muita coisa pelos pacientes, incontáveis tantos, quando, durante a espera pacienciosa, não estava chovendo como no dia de ontem, percebi, atravessando a rua, a passos lentos, umazinha menina morena como o tampo da mesa que acolhe meu computador.

Ela era frágil como uma margarida recém aberta em uma só flor. Prestes a murchar como o velho ancião, refém da tristeza de ter perdido a esposa, num dia de muita dor.

A muito custo ela conseguiu, levando na dobra do cotovelo uma sacolinha de plástico cheia pela metade de produtos que ela adquiriu num supermercado próximo, achegar-se a mim, um atento doutor dos rins e vias urinárias.

Veio de mansinho,devagarzinho, olhinhos encovados por uma fome crônica, bracinhos finos de onde se podiam quase ver todos os ossinhos longos, peito como o de uma pomba faminta.

Seu pescoço era esguio. Suas perninhas finas mostravam sinais recentes de que ela, aquela meninazinha nova, teria a idade de quantos anos?, seriam seis, sete, mais de dez? Não imaginei no momento. Pelo aspecto da face da meninota que assentou-se junto a mim, naquele ponto de ônibus quase vazio, só estava eu, uma senhora obesa, e mais tarde chegou a meninazinha da qual tento contar a triste história, exemplo de tantas e tantas que perambulam solitárias pelas ruas com cheiro de festa de nosso amado país.

Tentei puxar prosa com elazinha.  Ela não respondeu à primeira pergunta. Esperei alguns minutos para proferir a segunda. Ela continuou no seu silêncio de sepulcro morto.

Por fim, afinal, quando o ônibus apontou na esquina de baixo, eu já me levantava para tomar a lotação, a meninazinha trôpega, meio morena, um tanto clara, deixou sair de sua boquinha de lábios pálidos, dos quais se permitiam ver dentes mal cuidados, uma resposta em forma de questão.

A primeira pergunta que fiz a ela foi: “Quem é você? Quantos anos tem”?

A segunda e derradeira, as duas ela não respondeu de primeira, foi: “Você tem família, se positivo, quantos irmãos”?

Foi, prestes a tomar a lotação, a meninazinha ia continuar por ali mesmo, não lhe sabia dizer o destino, que tomei conhecimento de quem era a pobre menina de aspecto frágil. Não consegui adivinhar-lhe a idade, muito menos a identidade. Até então.

Já assentado comodamente ao banco do ônibus que me levaria ao centro da cidade, ao passar pela calçada onde a pombinha branca estava, quando de minha descida pela rua em horas antes, vislumbrei, ou teria sido um sonho, uma reles ilusão de ótica, vi uma pombinha, igualzinha a primeira, que entrou pela janela entreaberta do coletivo municipal, pousou seu corpicho frágil no encosto do meu banco.

A seguir, juro não ser uma mentirinha criança artiosa, a tal pombinha, já refeita de suas asinhas trôpegas, mostrando sinais evidentes de recuperação da saúde frágil quando da primeira vez em que a vi, com o biquinho esperto balbuciou nos meus ouvidos: “Sabe doutor, eu, e aquela meninazinha que se assentou naquele ponto de ônibus, naquele dia quando o senhor recém deixava o ambulatório de especialidades médicas, somos as mesmas pessoas. Só que em roupagens díspares”.

Saltei do ônibus logo depois. Como uma pergunta a ser resolvida.

Aquela pobre pombinha trôpega e a meninazinha frágil do ponto de ônibus seriam, em verdade, dois seres em vestes distintas?

Deixo a resposta a vocês, meus leitores. Deixem a imaginação voar. É tão bom…

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