Lutas inglórias de um cotidiano adverso

Hoje a madrugada acolheu minha insônia.

Fui à cama mais cedo que de costume. Deplorável equívoco.

Antes das quatro já estava de olhos abertos, rolando na cama, incomodando a quem dormia ao lado.

Ficar no leito sem ter o que fazer, sem dúvida, é, se não a pior, uma das coisas mais lastimáveis que conheça. Fazer amor, já aconteceu. Sonhos, não sonho mais. Pesadelos, tampouco os tenho tido. O prazer em descansar entre os lençóis, tentando amarfanhar o travesseiro se trata de ledo engano, dentre tantos que a vida me fez sabedor.

Fui à televisão tentando assistir a alguma coisa de interessante. Usei o controle remoto feericamente, debalde. Em todos os canais, em alguns, a maioria, um filme já no seu final. Noutro o recomeço retratava-nos a vida que levamos, todos iguais.

Movido por uma ansiedade ímpar fui de novo ao cômodo de banhos. Já tinha ocupado o vaso sanitário horas antes. A minha próstata atormentava a bexiga, que, com restos de urina me dizia, e fazia alarde: o seu resíduo pós-miccional aumenta cada vez mais. Faça, com certa urgência, um toque retal. E eu, especialista em Urologia, teimava em procurar um colega da mesma farda para efetuar o tal exame que fazia os mais idosos resistirem à consulta, isso em tempos antigos, hoje, não mais.

Bem antes das seis, passados alguns minutinhos apenas das cinco, deixei o achego do lar. Minha querida e amada esposa me inquiriu, sonolenta: “Paulo, onde vai tão cedo? Fique na cama um pouco mais”.

Mas eu, teimoso e brioso, vesti a roupa escura, calça de tecido leve, camisa em tons de azul marinho, nos pés um tênis confortável, e deixei o portão do condomínio dando um até breve ao porteiro madrugador, que varou a noite sem os lençóis.

A rua por onde andei bocejava num sono pesado. Poucos noctívagos, como eu, perambulavam em direção a algum lugar. Eu buscava o local inspirador onde sempre escrevo, antes que o médico que habita dentro de mim tenha de usar o estetoscópio e a intuição dotada de rica sensibilidade para tentar elucidar o diagnóstico dos pacientes que me procuram.

Este fenômeno tem acontecido com razoável constância nos últimos tempos. Em absoluto tem me atormentado.

Como o tem o cotidiano maçante que me aporrinha desde quando me entendo por médico escritor.

Ontem, ao chegar da academia onde malho diuturnamente, por volta das seis da tarde, quase dezembro ao meio, hoje é dia quinze, parei um pouco para pensar na vida que tenho levado.

Do trabalho à academia, do consultório a uma unidade de atendimento do sistema único de saúde, local conturbado, lotado de doentes à procura de uma cura que, na maioria das vezes não vem, e continuam seus périplos esmolante de déu em déu, sem solução aparente, esperando que um dia, bendito dia, a saúde pública melhore. Mera esperança vã.

Ontem, assim que tomei uma ducha morna no chuveiro de box espaçoso, ali cabem mais de duas pessoas, já de pijama peça única para tentar conciliar o sono, usei o celular para uma breve conversa com o valente guerreiro que hoje cuida da saúde da minha roça.

Do outro lado da linha uma voz preocupada me disse, soturnamente: “Doutor Paulo, infelizmente não tenho boas notícias. Seu cavalinho inteiro, do mesmo nome do seu neto, Theo, varou a cerca divisória entre a sua propriedade e outra, junto a sua mãe, que não ficou prenha como a gente supunha, apesar do pagamento de quinhentos reais que o senhor desembolsou ao dono do garanhão negro, acabou recebendo um coice num dos olhos, se não me engano o direito, e ficou cego daquela banda. Eu os trouxe volta ao pasto onde deveriam estar. Aquele perto da casa beira- lago, ligado a outra casa, onde moro, por uma estrada que, graças às chuvas que caem sem parar, fica cada vez mais intransitável. Não bastante tamanho prejuízo, o mesmo cavalo lindo, com um futuro promissor, ao qual foi oferecido um preço de compra de mais de dez mil reais, agora vale menos da metade. Ah!, já ia me esquecendo da Milena, a sua vaca baldeira, a melhor do curral, perdeu uma das tetas na cerca de arame farpado, além de ter sido picada por cobra peçonhenta, agora jaz deitada perto do curral. Antes de cair a ligação ainda ouvi, da sua boca agourenta, outra notícia ruim: a casa que o senhor está construindo, devido à chuva da semana passada, teve os alicerces afundados, e precisa urgente de reparo. Nem sequer imagino o prejuízo, deve ser alto, da altura do prédio onde o senhor trabalha duro, para sustentar tantos e tantos percalços, que nem imagino quantos serão”.

Assim que o celular deixou de vociferar contrariedades péssimas voltei a televisão. Era o noticiário das nove. Quando o âncora apenas comentava, an passant, sobre a crise, sobre o desemprego, sobre a violência desmedida, sobre os assaltos aos cofres públicos, sobre as politiquices imparáveis, sobre o estado catastrófico das estradas que cortam de norte ao sul o país, sobre as enchentes em toda parte, sobre a seca no nordeste, sobre o acidente que ceifou vidas novas, sobre as balas perdidas nas grandes cidades, como exemplo maior cito o Rio de Janeiro, sobre uma infinidade de novidades péssimas, as boas ele sonegava ou não existiam de fato e de direito.

Depois que desliguei a TV, já tentando fechar os olhos, sem um pingo de sono, também com tanto estresse de final de ano, foi que pensei nas lutas inglórias de um cotidiano adverso, e por vezes cruel.

Por este motivo não tenho conseguido dormir em paz. Assim como tantos e tantos outros brasileiros.

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