Quantas e quantas vezes, como médico, assisti, impávido, a pacientes terminais vivendo naquelas Unidades de Tratamento Intensivo, salas onde o enfermo recebe, quase sempre sem poder dizer: “Parem com tudo isso!, deixem-me partir rumo ao infinito, não quero mais continuar entregue a um leito de hospital sem nada poder fazer a não ser abrir os olhos, de onde não saem mais do que um pedido de socorro, pois não posso sequer balbuciar palavras, levantar o braço cheio de hematomas secundários a picadas de agulhas por onde entram medicamentos sendo o soro veículo de um sopro de vida, que em mim tem o mesmo sabor de café sem açúcar, ou de um amor sem saudade”.
Quantas e quantas incontáveis vezes percebi, naquela antesala da morte, pode ser que esteja errado, pessoas que perderam inexoravelmente a saúde, outras apenas se recuperando após uma cirurgia delicada, o momento exato para voltar ao quarto, esperando o abraço de boas vindas de um parente perto, um filho, um pai, uma mãe, quem seja.
Foram tantas e tantas ocasiões que perdi a conta de quantas foram. Embora não tenha sido médico plantonista nos CTIs da vida por ali passei em visita a um caso aparentado, ou de um pós-operado meu.
Ainda me lembro de um rapazola, no esplendor dos seus pouco mais de vinte anos, acidentado de moto, num grave atropelamento de uma vaca, quando se dirigia à cidade perto de minha roça, município de Ijaci, quando no CTI da Santa Casa, lindo hospital pertinho de meu consultório de urologista, onde passei os melhores momentos de minha vida, entrei naquela sala ampla, de boxes separados por biombos bem arquitetados, em visita àquele bom moço trabalhador rural.
Foram mais de dez visitas. Nas vezes em que o vi, traumatizado de crânio, era cada vez mais grave o seu quadro. Um corpo entubado, em respiração assistida, com várias cânulas enfiadas em sua pele morena, dura, curtida de sol.
Pela minha experiência o rapaz não sairia nunca do seu estado vegetal. Ele não tinha chances de continuar a montar em sua motocicleta que pouco sofreu avarias, como seu corpo forte foi vítima. Muito menos de fazer o que mais gostava: namorar uma mocinha linda que até hoje espera a sua volta, apesar de saber que seu amor primeiro não voltaria jamais do além.
De fato a profecia se cumpriu. O jovem partiu. Não se despediu de nós, nem ao menos pôde ver lágrimas descidas dos olhos de sua família. Nem conseguiu, dentro do seu cadáver, imaginar a saudade que ficou dentro do peito de seus amigos.
Como médico pude experimentar os mais angustiantes e tristes momentos de minha vida quando tive em meus braços o que restou do meu pai enfermo. Foram meses, quase um ano, entregue a um leito. No estado em que ele estava, acamado, esquálido, olhos perdidos no vazio do nada, confesso, sem medo de me taxarem de sem coração, desejei-lhe a morte. O que de fato aconteceu, pouco depois. Não na mesma circunstância de quando o jovem da motocicleta faleceu no CTI da Santa Casa. Meu pai morreu no conforto do seu lar, onde quero morrer, quando Deus me chamar. Já a minha saudosa mãe despediu-se como um passarinho, sem sofrimento atroz, andando pelas próprias pernas para dentro do mesmo hospital. Foram debaldes as tentativas de evitar-lhe a partida. Ao ver a luta dos colegas, no mesmo bloco cirúrgico onde tantas vezes tentei, penso ter conseguido sucesso na difícil jornada para driblar as enfermidades, inserir a saúde no lugar das doenças, esculápios bem treinados em perenizar a vida, dando o melhor de si mesmos, num momento do qual não me esqueço pedi que eles abortassem o esforço hercúleo de restituir à vida a minha mãe, e, ali mesmo, na sala de cirurgia da Santa Casa querida, fechei afinal os olhos verdes de minha mãe Rute.
Na semana que passou, mês de dezembro, quase Natal acontecendo, passei por outro CTI.
O hospital não era o mesmo, e sim outro, pertinho da casa onde moraram meus pais.
Fui em visita de médico a uma tia casada com um Rodarte. O tio Rui, pai do Luis Carlos e do primo Pedro, ambos primos Rodartes.
Há quantos e quantos verões tenho tido o prazer de conviver com a tia Dora. Dora Resende Rodarte, nascida em Ingaí, ex- Pinheirinho, onde tio Rui tinha uma pequena fazenda.
Tia Dora era a candura em pessoa. Boa como ela só.
Ainda me lembro de onde ela morava com o tio Rui. Era perto da Costa Pereira, a rua dos Rodartes, que se transformou quase completamente, como nos transformamos depois de certa idade.
A querida tia Dora tinha mania de doença. Na minha especialidade quantas vezes ela passou por aqui, queixando-se de infecção urinária, culpando um simples cisto renal por quase a totalidade de suas queixas, que eram várias.
Nos últimos anos de fato a tia Dora caiu enferma. Desta feita a coisa ficou séria.
Seu filho mais jovem, o dedicado oficial de cartório, a exemplo do pai, montou uma quase unidade de tratamento intensivo dentro de sua casa, onde vivia antes dele a tia Dora Resende Rodarte. E seu marido Rui.
Inúmeras enfermeiras se revezavam nos cuidados à tia Dora enferma. Eram plantões que varavam noites, iam madrugadas adentro, estendiam-me pela luz do dia.
Quase todos os dias, ao cair da tarde, dava uma passadinha por lá. Isso quando o cadeado do portão verde estava destrancado. Bem sabia que o primo Luis Carlos não gostava de visitas inoportunas.
Levava uma santinha nas mãos, de propriedade de tia Dora, se não me falta a lembrança era uma imagem linda de Nossa Senhora, a mãe de Jesus. Tia Dorinha, a Dodó, como era chamada pelas amigas, expressava à imagem de Nossa Senhora uma doce reverência, embora com uma sonda introduzida no estômago, uma cânula enfiada ao pescoço, inerme a uma cama coberta por um colchão próprio para evitar as escaras, advindas de uma imobilização prolongada no leito.
Tia Dora não podia falar. Por motivos distintos. Ela tentava balbuciar palavras, escrevia num caderninho postado ao lado da cama. Onde algumas vezes anotei a saudade e o amor que sentia por ela.
Na semana passada fiz-lhe uma visita no CTI do Hospital Vaz Monteiro. Que linda estava aquela unidade de tratamento intensivo!
Encontrei-a em estado deplorável. Edemaciada, em respiração assistida. Outra, das tantas pneumonias que a acometeram, cuidava de fazer pior o seu quadro respiratório.
Tia Dorinha, pessoa de boa índole, caridosa, mãe extremada, esposa dedicada, amada por todos que com ela conviveram, não merece continuar do jeito que está.
Perdoem-me primos Pedro, meu estimado dentista, meu outro respeitado e querido Luis Carlos, que segue sem falhas a profissão do pai, tio Rui, irmão de minha saudosa mãe, Rute, filha do casal Rodartino Rodarte e dona Belica, que viveram felizes onde hoje é o Edifício Rodartino Rodarte, de ombros ligados à caixa d’água da Copasa, começo da Rua Costa Pereira. Mais uma vez, perdão.
Por favor, deixem a tia Dora partir ao encontro do tio Rui. Onde, por certo ela viverá feliz, ao lado de Deus Pai e todos os santos.
Se por acaso sentirem uma certa empáfia do primo Paulo Rodarte mais uma vez peço que suavizem a minha opinião.
Em absoluto tive a intenção de magoá-los. Pelo contrário. Foi assim que consegui me exprimir, ao ver o sofrimento por que tem passado a querida mãe de vocês, minha tia Dora amada.