Aquele carinha tranquilo, nascido e vivendo de bem com a vida, jamais teve um momento de irritação até os vinte anos, quando teve de se mudar da roça.
Zezinho nasceu antes que o ano fechasse as portas. De pais separados, a mãe abandonou a família assim que viu o filho nascer, aliás, nem lhe percebeu o choro, pois já tinha em mente uma multidão de ideias inconvenientes, deixar aquele pedaço de pasto sujo, aquelas vaquinhas sem pedigree, a vida singela na roça, se bandeando para a cidade grande, onde a agitação de final de ano era como ela gostava de se ver feliz.
Foi aos cinco anos que Zezinho conheceu a nova mãe, de nome Madrasta Ruim, pois era exatamente assim que se comportava a mãe postiça do pobre menino antes sossegado, que adorava fazer traquinagens como toda criança faz: soltar barquinhos de papel no corguinho recém- formado pela chuvadonha que despencou a noite passada, amarrar laços de fita no rabo da vaca Cambota, pois mancava de uma perna de trás, embora fosse boa de leite, arrancar minhoquinhas serelepes na terra fofa debaixo da jabuticabeira de onde caiu de cabeça, num dia que caçava borboletas com seu puçá de mentira, com mais furos que tela branca, por onde vazavam as mariposas depois de se verem aprisionadas.
Nessa idade novinha Zezinho viu pelo lado lúgubre a face sorridente da vida. A tal Madrasta Ruim logo mostrou a face de Cruela Cruel. Apenas desejava as economias de uma vida inteira do pai do menino guardadas a sete chaves, de um cadeado enferrujado, no interior do colchão onde suspirava de sono o pai de Zezinho, que foi batizado de João Sem Sorte.
A mãe postiça de Zezinho, na ausência do pai, trancava o pobre menininho na tulha de ração, onde ratazanas enormes faziam a festa, sem serem convidadas, nas espigas graúdas de milho novo recém- colhido seco da roça de milho há tempos plantada.
Zezinho, por este motivo, desenvolveu-se com pavor de roedores, sendo vítima de pesadelos nos quais era ingerido pelos ratos de garfo e faca, à hora do jantar.
Mesmo assim Zezinho não perdeu a tranquilidade. Na escolinha rural as professoras pacienciosas vinham da cidade perto numa Kombi que, via de regra, via as rodas atoladas na lama nos tempos de chuva intensa. Era preciso usar a força de uma junta de bois para tirar o veículo do atoleiro.
Zezinho Sossegado estudou até a quinta série do primeiro grau. Era bom aluno, atencioso e comportado. Só que, para seguir adiante tinha de se mudar da roça pra cidade. Embora fosse uma cidade pequena, o ensino ali era de boa qualidade.
Aos quase dezoito anos, prestes a completar a maioridade completa, a genitália já tinha experimentado a quentura de uma égua no cio, conheceu o sexo como muitos jovenzinhos da roça são iniciados, montando a fêmea do cavalo num matinho em cima de um cupim abandonado. Graças ao bom Deus a Madrasta Cruela já tinha abandonado o pai, a exemplo da mãe do quase adulto, que não tinha boas recordações dos tempos de menino.
Como a renda do leite não dava para manter o pai e o filho, quase gente grande, Zezinho, num final de semana do qual nunca vai se esquecer, era mês de dezembro, quase Natal, o já adulto Zezinho embarcou no caminhão de leite, daqueles bem antigos, que ainda levava na carroceria enormes latões de leite quentinho, de vez em quando um lambari vivinho era despejado pululante no tanque inoxidável do lacticínio, em direção ao futuro. Na roça, com o preço do leite despencado como a água da cachoeira faz das pedras de onde nascem, onde sobrevive um, não resistem dois.
O pai se despediu do único filho com lágrimas escorrendo-lhe do canto dos olhos. Foi com um abraço apertado, um suspiro bem dado, que tudo aconteceu.
Uma vez na cidade perto, onde só tinha aparecido, apenas por uma vez, mesmo assim rapidinho, Zezinho Sossegado quase perdeu a compostura ao andar no passeio, naquele furdunço de fim de ano. Nunca havia visto tamanha azáfama. Nem quando uma vaca irada do pai correu atrás dele.
Pessoas, as quais nunca tinha visto, ensacoladas, espevitadas, pensavam que a calçada cheia de buracos e poças de água barrenta era só delas.
Onde mal cabia um, aboletavam-se dois ou mais de três.
Com muito custo Zezinho, quase desassossegado, arrumou um lugar para morar. Era um quartinho insalubre, nos fundos de uma casa tosca. Ali vivia uma viúva quase negra, muito parecida a uma aranha enorme, apelidada de Viúva Negra, pelo mesmo Zezinho emerso de um negro passado.
A única vantagem de morar ali era o precinho camarada que Zezinho entrou em acórdão com a dona da casa da frente.
Foi empregado num açougue infecto onde baratas rondavam as carnes de onde exalava mau cheiro, um cheiro pútrido de esgoto fedido, com um salário mais ainda fedido que o preço que o laticínio pagava pelo preço do litro de leite branco da vaca preta.
Um mês se passou, desde aí.
As contas de luz e água, o aluguel, os boletos de toda natureza se amontoavam por sobre a mesa onde Zezinho comia.
O salário miúdo mal dava para pagar o aluguel, pobre das outras contas.
Eis que chegou o dia do Papai Noel estacionar o trenó puxado pelas renas da imaginação. As ruas estavam lotadas. O mesmo bom velhinho, de barbas nevadas, parou o trenó num lugar proibido. E não havia placa nenhuma indicando nada parecido. Foi, no momento exato que Papai Noel chegou ao seu trenó, viu, no traseiro de uma das renas, a mais chifruda que havia, uma multa pesada de trânsito. Era pagar ou deixar o comboio de renas e o trenó, ainda não pago, penhorado a um banco perdulário, preso na delegacia dos aflitos.
Foi o mesmo Zezinho Sossegado, que já perdia o sossego, que o acudiu. Explicou, sossegadamente, ao guarda de trânsito quem era o Papai Noel. Embora o guarda maldoso não acreditasse na singeleza do singelo, no espírito de Natal. Muito menos em Papai ou Mamãe Noel.
O trenó do velhinho do RO RO simpático foi afinal liberado sem pagar a vultosa multa. Como gesto de agradecimento Papai Noel deixou na mão vazia de Zezinho, que de muito já perdeu a tranquilidade, um embrulho graúdo, enrolado em papel celofane vermelho. Era nada mais que um rato empalhado.
Assim que a carruagem de rena partiu em direção à Lapônia (alguém de vocês conhece a Lapônia, ou acredita em Papai Noel?) Como os torcedores do Galo Mineiro eu digo: “Eu acredito”! Embora desacreditando piamente. Sem direito de piar.
Na noite de Natal, triste para Zezinho e muitos outros meninos iguais, esparramados pelo mundo inteiro, ao acordar, no dia vinte e cinco, ao deixar a casinha alugada, nos fundos da casa da Viúva Negra, viu a sua nova bicicleta desaparecida de onde estava. Amarrada com uma corrente grossa a um poste. Afanaram até o poste, junto aos fios de eletricidade.
Naquele apagão inusitado Zezinho, ex-Zezinho Sossegado, perdeu as estribeiras por completo.
A última vez que o vi, ele, o pobre Zé, estava internado num hospício, pelo SUS, atado à cama numa camisa de força.