Aliás, foi há cinco dias atrás.
Todo dia a gente acorda, olhos sonolentos, emburrado, contrariado, principalmente às segundas feiras, a primeira providência, no meu caso, é assentar-se ao vaso sanitário, exonerar a bexiga e os intestinos, lavar o rosto com água fria, se não for ao chuveiro passar uma água na cabeleira quase extinta, escovar os dentes antes que eles se vão para sempre, visto a roupa dependurada na poltrona branca perto da cama onde sonho que ainda vou ser escritor de fama, que vende livros sem precisar oferecer a cada um que passa ao meu lado, vou morar fora do meu país, onde o hábito da leitura ainda não está inserido ao status quo, e constatei os vários fatos narrados a seguir.
De frente ao espelho que não mente, aquela superfície que indica com segurança o envelhecimento, não a sonega, depois do rosto lavado em água fria, olho nos olhos da sobrancelha. Ela está cheia de fios brancos entremeados a uns poucos negros. É uma sobrancelha espessa, como taturana cachorrinha que nos fazia medo em criança, hoje a gente evita o seu contato, mas em absoluto não a esmago com a sola rodada de um dos meus tênis que tanto sofrem.
Olhando de perto a sobrancelha, de pertinho, as meninas dos olhos ainda enxergam bem, apesar das duas lentes artificiais que foram inseridas no fundo dos olhos, e vou tirando, retirando com uma tesoura de ponta fina os tais fios brancos.
Quase que a peluda sobrancelha fica exaurida dela mesma. Se continuasse a agir com a tesoura em pouco tempo ficaria apenas uma marca acima dos olhos semi verdes, herança de minha mãe Rute Rodarte.
A seguir, ainda fitando o dedo duro do espelho, defronte à pia do banheiro, escovo com sofreguidão os dentes onde faltam alguns do lado de cima. Trato bem dos sobreviventes. Quando contrario minha dentista experiente afirma: “Paulo. Escove os dentes, passe o fio dental carinhosamente, massageie as gengivas pois é lá que nascem os dentes. Faça isso sempre que comer alguma coisa, não serão duas ou três vezes, e sim quando for conveniente”. E eu, como bom menino comportado, embora o moleque que vivia dentro de mim partiu a exatos mais de sessenta anos, seriam mais, ou menos? Não sei precisar quantos são.
Deixando os dentes de lado, ainda fitando o espelho do banheiro amplo de minha casa de onde vou me mudar um dia, não sei ainda quando, passo um pente fino nos cabelos penteados de lado. Na intenção ilusória de tampar a calva ampla igualzinha a do meu pai, que os anos levaram faz tempo.
Já de roupa no corpo, tapando-me a nudez que choca os não adeptos do naturismo, eu, do meu lado preferiria andar pelado como viemos ao mundo, contra a nossa vontade, tomo meu desjejum frugal.
Deixo a casa rumo à rua principal. Paro num bar amigo. Isso antes das sete da manhã. Naquela hora temprana basta um cafezinho magro. A alimentação de maior sustância vem depois, no consultório à espera das consultas que um dia aparecem, algumas se fazem ausentes sem avisar, outras pagam o preço combinado, mesmo inesperadamente, outras marcam operações menores: como fimoses e vasectomias, cauterização de verrugas penianas, exames com um aparelho que inserido na uretra investiga a bexiga e o caminho da urina ao exterior, entre tais procedimentos escrevo, como agora estou ao computador, e por aí percorre o dia, com a sua mesmice de sempre.
Antes das dez parto em direção ao posto de saúde onde o clínico que vive dentro de mim dá seus palpites fora da Urologia. São doencinhas pequenas, receitas aviadas de outro colega, as azuis predominam, atestados que atestam o impossível e o inevitável, e saio de lá em direção a minha casa. Assentado à mesa, quase sempre em número de apenas dois, almoço com a vontade de um boi.
Antes que o meio do dia termine deixo a casa ainda olhando os olhos inquiridores do espelho. Escovo os dentes, penteio os ralos cabelos tintos de branco nas têmporas, e volto de novo à segunda metade do trabalho, para dar um pulo na academia pertinho de onde viveram meus pais, onde hoje vive uma linda menina, no esplendor dos seus mais de cinquenta anos de vida.
Volto de novo a casa. Cansado das lidas cotidianas, mas esperançoso para olhar a face espelhada do mesmo espelho, antes de assentar-me ao sofá defronte à televisão, e assistir às más notícias da noite. Com as boas sonho depois.
Como disse e repito, nunca seria demais tocar no assunto, que pode incomodar os de mais idade, hoje, há cinco dias atrás, ao olhar a cara do espelho, do banheiro da minha suíte, ao constatar os meus cabelos brancos, a minha calva sem mostrar sinais de ir adiante, as rugas passarinharem-me pela face, sobretudo na testa ampla, os olhos com menos viço, a boca pequena como sempre foi e será, os dentes com a função preservada, tomara, dada a importância que eles têm, a vida que me resta os mantenha funcionando bem, com a sensibilidade que ainda pulsa de dentro do meu eu, ao perguntar ao espelho: “Espelho espelho meu, quantos anos você me dá”?
Há cinco dias atrás acordei aos sessenta e sete. Não sei se pareço menos, ou mais…
Foi quando escutei o espelho falar, ou seria uma ilusão de ouvido?
“O senhor, velho sênior, tem a idade exata que sua carteira de identidade mostra. Mas a sua alma e sua conduta é a de um menino”.
O que pensam vocês, seria o mesmo pensamento do espelho do meu banheiro principal?