O menino do pão de queijo

Quem ainda não sentiu na ponta da língua o sabor inconfundível e irresistível daquela iguaria de puro sabor de minas, que se espalhou pelo mundo inteiro, com incontáveis receitas, distintas das que minha avozinha fazia, não soube aquilatar o bom, o saboroso, acompanhado por uma broa de milho feita com muito queijo, um cafezinho passado na hora no coador, não naquelas cafeteiras modernas, cujo sachê custa os olhos da cara, experimente, por favor. Depois não vem dizer que pão de queijo, mesmo frio e murcho, esquentado no forno de novo, lambuzado de manteiga, novamente se transforma em petisco do mesmo quilate de mandioquinha frita com torresmo de barriga de porco não muito obeso. Numa tarde noite quente saboreado com uma cervejinha ao ponto, retirada do freezer com aquela nata de gelo em volta da garrafa, sem se deixar congelar o conteúdo. Em boa companhia, tenho dito.

Hoje mesmo, ao descer ao consultório bem cedo, quase ao mesmo tempo de as padarias se abrirem, ao tomar meu cafezinho magro num barzinho simpático perto de minha casa, ao levar a boca um daqueles pãezinhos de queijo emerso do forno, com sinais de queijo verdadeiro derramando-se pelas beiradas, percebi, achegar-se ao balcão bem cuidado onde se podiam ver petiscos variados: pasteizinhos de carne e de queijo, cigarretes para todos os gostos e prazeres, e outros afilhados maiores, um rapazola miúdo, moreno escuro, cabelos espessos, pernas longas e finas, peito afinado por uma desnutrição oriunda de longos períodos de inanição, que timidamente pediu ao dono do estabelecimento, velho conhecido, embora ele não fosse tão velho, alguns pães de queijo para levar à escola.

Não sei quantos daqueles petiscos foram embrulhados num saquinho pequeno. Talvez cinco, seis, uma dezena. O tal saquinho não deveria pesar mais que menos de dez gramas.

O jovenzinho amistoso e educado trazia numa das mãos uma nota de cinco reais. Não sei se daria para pagar a encomenda. As coisas vendidas ali, naquele bar de boa fama, eram baratinhas e bem feitas, pela mulher do dono e outras ajudantes de boa índole.

Não resisti à tentação. Eram tempos de final de ano. O Natal se avizinhava perto. As renas do Papai Noel deveriam estar se aquecendo bem longe na distante Lapônia, entre montanhas de neve, deixando apressadas o estábulo de madeira escura, onde fizeram dieta rica em proteínas para aguentar o batente, suportar a longa viagem ao redor do mundo inteiro, levando em suas asas de mentira uma montanha de presentes, todos encomendados de véspera por cartinhas de escrita trêmula, grafadas por mãozinhas ingênuas de meninos de todas as partes do mundo que ainda acredita em Papai Noel. Eu ainda creio nele, como creio em Deus.

Acabei pagando os pãezinhos de queijo do menino que me agradeceu o presente que para mim nada significava além dos míseros cinco reais que o jovenzinho trazia entre os dedos da mão esquerda, talvez fosse a única nota que ele tinha retirado do porquinho cofrinho guardado com tanto carinho num esconderijo que só ele sabia onde ficava. Pela minha desconfiança o tal cofrinho, que lhe foi dado de presente no Natal do ano passado, ficava reconditamente enfiado dentro de um armário de pés desequilibrados no quarto pequeno que dividia com dois irmãos menores. Num casa pobrinha herança de uma tia torta, já que ele, Zezinho, fazia às vezes de pai e mãe de uma ninhada de rica prole. Os pais de Zezinho haviam abandonado os filhos por serem viciados em drogas ilícitas, alcoólatras irrecuperáveis, moradores de rua, enfiados ao submundo cruel que divide as pessoas boas e as nem tanto.

Soube, pelo dono do bar simpático, onde quase sempre tomo meu pequeno desjejum, que o menino Zezinho passa tempos sem aparecer em seu bar de preços acessíveis, frequentado por gente humilde e trabalhadores de bem. Quando aparece, e pode, paga pelos pãezinhos de queijo. Quando não pode promete pagar quando a coisa melhorar, mas não melhora nunca, nem no Natal do ano que vem.

Deixei o bar do pão de queijo e outras iguarias finas pensando no menino Zezinho, o do saquinho pela metade cheio de pães de queijo quentinhos.  E nos outros meninos desaquinhoados pela sorte. Os que não nasceram em berço doirado. Os meninos que esmolam nos semáforos, vendendo balinhas e garrafinhas de água mineral, desafiando o trânsito e as mazelas da vida errática que levam.

Desci a rua pensativo. Neste dia nove de dezembro, dois dias depois do meu aniversário. Mais abaixo mendigos, que talvez fossem drogados, ainda dormiam, de olhos abertos, paulatinamente espreguiçavam-se.

O menino do pão de queijo, de nome Zezinho, não teve a infância feliz que eu tive. Que tantos outros meninos, como eu, tiveram.

Ele não tinha o costume de acordar, no dia vinte e cinco de dezembro, ávido por desembrulhar presentes deixados de véspera por falsos papais noéis à volta da linda árvore de Natal.

A única árvore de Natal que o menino do pão de queijo pôde observar, em todos os natais passados desde quando veio ao mundo, foi um pinheirinho raquítico que coletou na lata de lixo de uma família abastada que trocava de árvore a cada ano. Nos derradeiros anos só viu uma árvore enfeitada e iluminada na praça principal da cidade onde morava. Só que neste ano a praça principal ficou às escuras. Sem enfeites de Natal.

Desejo, de coração e peito aberto, sem nenhuma intenção de alardear meu feito, ou me pintar de salvador da pátria, que em outros natais as desigualdades sociais, se não deixarem de existir, que pelo menos sejam minoradas. E que Zezinho, o menino do pão de queijo, não apenas encontre pelo caminho alguém que lhe pague os pães de queijo, mas que a vida lhe proporcione um futuro mais alvissareiro e digno.

É o que lhe deseja um ancião, com a alma de menino…

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