Quem disse que os anos nos presenteiam com caminhõezinhos de madeira, feitos pelos presos, com bicicletinhas de rodinhas que com o tempo acabam perdendo as suas, com bonecas para as meninas, ou para aqueles pixotes ainda indefinidos frente ao sexo, com carrinhos de rolimã, que deslizam ladeira abaixo provocando acidentes sem gravidade, um galo na testa, uma esfoladela no joelho que logo sarava com mercúrio cromo, com patinetes de duas rodas apenas, um guidon traiçoeiro e um pisante de ferro duro, com aqueles brinquedinhos de LED, peças feitas de plástico para montar casas verdadeiras, que em verdade não resistem às mãos estabanadas de um irmão mais velho, que por vezes nos dava cada surra apartada graças à intervenção de nossos saudosos pais, que estão no céu a velar por nós; ou uma bola de futebol bem velha, hoje as bolas, de tão perfeitas, lembram as bolas das árvores de Natal, só que não quebráveis como elas, um ou outro jogo para estimular-nos a inteligência, a minha parou no tempo, são tantos e tantos presentes de aniversário, pena que minhas duas festas se confundiam, pois eu fabrico anos em datas próximas, o trocar de anos em sete de dezembro, dia de hoje, e a festa para onde o Papai Noel era convidado caía poucos dias depois, antes que o ano novo nos ensinasse a ter esperança em dias melhores, o que infelizmente não acontecia, quase sempre, pena…
Ainda me lembro, os anciãos têm memória perfeita para coisas de um passado remoto, quando, meninote ainda ganhei de presente de aniversário um jogo de vídeo game motivado pelo controle a distância. Com que voracidade me atirei àquele embrulho coberto por um papel colorido, se ainda presente à lembrança era um papel celofane azul, com bolinhas amarelas, atados por um laço de fita vermelha, enfiado ao meio do pacote um cartão lindo, escrito com a letra bonita de minha mãe Rute: “Paulinho, seja um bom menino, estudioso, não tão artioso, preste atenção aos conselhos de sua avó, minha querida mãe Belica, e cuidado com os percalços que a vida traz, nas suas curvas perigosas que o futuro nos reserva em cada esquina que nos espera”.
Abri a linda caixa com olhinhos inquiridores de exacerbado assombro. Nem sei para onde foi aquele vídeo game de tantas e tantas “joganças”. Talvez tenha feito presente dele a outra criança menos aquinhoada pela sorte. Ou tenha ido parar no lixo, embrulhado num saco preto, de plástico negro, da mesma cor dos urubus.
O tempo passa. A criança fica. O adulto aparece, sem observar, debaixo da árvore de Natal, ou por cima da cama onde permanecem até que a festa acabe, os presentes recebidos pelos convivas naquela festa de aniversário tão linda, que tem efeito mágico até aquele instante atual, de quando o adulto perde a graça, cai em desgraça dentro de si mesmo, e de presenteador passa a oferecer presentes aos filhos, depois o adulto vira idoso, e de criança à espera de Papai Noel passa a ser o próprio Bom Velhinho, sem ser preciso usar aquela barba postiça, pois a dele, já crescida, não aparada, de cor branca que os anos lhe deram de presente, principia a distribuir OH OHs, a torto e a direita.
Hoje, sete de dezembro, dia lindo, sol a supino, levantei um ano mais idoso. Não mais tenho sessenta e seis anos de vida. Acabo de completar, a partir da meia noite completos sessenta e sete. Logo se seguirão outros. Sessenta e oito, e nove, setenta, e por uns em diante.
Teria fôlego para chegar mais em frente? Meu pai veio a se despedir de nós aos setenta e sete. Minha amada mãe aos oitenta e três. Meu avô, por parte de pai, não sei a exatos quantos anos ele se foi. Por parte de mãe o Rodartino Rodarte correu meio mundo, com aquelas sandálias de couro, com aquele terninho azul marinho, de listras claras. Minha mãe um dia me disse que meu primeiro terno, não sei pra onde ele foi parar, foi fabricado com o tecido de uma das pernas daquele terno que para mim ficou eternamente arraigado na memória que nunca se cansa de recordar o passado. Embora sabendo que o presente e o futuro não mentem, e eles nos convocam adiante, pois atrás vem gente com pressa, aos trancos e esbarrões, nem se importando com a marcha inclemente da pressa maledicente que a vida nos leva. Nem sei pra onde, nem sequer imagino.
Neste dia sete de dezembro, dia dos meus “cumpleanos”, de “desaniversariar”, nunca é demais explicar que quando a gente fica maduro (não queria dizer velho, idoso, ou gagá, ou sênior), não se diz aniversário. Pois a partir de certa idade, não por nossa vontade, os anos teimam em caminhar pra frente. Quando jovens para eles se torna indiferente. Tanto faz,tanto fez.
Sei que desço a colina dos anos em marcha mansa. Não sei quantos anos me restam aqui. Neste mundo lindo de viver feliz. Se não nos sentimos felizes, não seria por culpa do mundo, e sim nossa mesmo. Bem sei que a felicidade marca passo a descompasso com o interior do nosso eu. Se estamos bem, de nada importa se o mundo vai em caminho cruzado. Se estamos mal, vamos virar o leme da nau que nos conduz pelo mar agitado da vida terrena.
Hoje cumpro mais um ano de vida. Uma vida boa, para a qual só tenho motivos de agradecimentos. Tantos e tantos seres, como eu, humanos, não têm a mesma ventura de terem nascido onde eu vim ao mundo, num lar equilibrado, de pais amados, e depois a eles sucederam outra família da mesma forma tão especial. Este mundo gerido por Deus e por todos os santos e seus discípulos só me tem dado motivos para ser feliz. Espero, de coração aberto, que esta mesma felicidade se estenda ao coração de todos. Indistintamente todos, sejam quem forem.
Agora são quase oito horas da manhã. Uma manhã linda, sol resplandecente que sua luz ofusca as lentes sensíveis de minha retina frágil.
Foi quando pensei no presente que gostaria de receber no dia de hoje. E nos que não. Vou tentar enumerá-los, um a um.
Não tenho idade para ganhar de presente aquela bicicletinha de rodinha cor de rosa choque. Nem mesmo aquela velha patinete surrada, que me fez provocar alguns galos na testa, não tão ancha como agora. Muito menos aquele vídeo game que hoje repousa em algum lugar no passado distante, talvez num baú de guardados, num sótão esquecido dentro da solidão da minha saudosa e imensa solidão. Nem mesmo aquela bola de futebol amarela, que foi levada pra longe do campinho cambeta, para outros campos mais longínquos, que a distância me fez olvidar. De tão longe que foi. Afinal foram tantos e tantos regalos, tantos brinquedos perdidos, ou ainda revividos pela criança que fui, agora não mais nunca mais serei.
Hoje, durante a minha descida rumo ao meu consultório, no dia do meu desaniversario, já passei dos sessenta em sete dígitos, pronto a amealhar mais idade, ainda com o mesmo espírito de menino travesso, esperto e traquinas, peço, aos meus queridos pais que já se foram, a minha família que hoje substituiu meus entes precursores, apenas um presentinho modesto. Um mimo simplesinho.
Não quero ganhar de presente neste dia sete de dezembro uma bengala onde possa escorar a minha velhice. Muito menos um andador, para que eu não caia pelas sarjetas da vida trôpega dos idosos. Jamais me presenteiem com uma dentadura nova. Por certo ela vai ser cuspida de minha boca banguela. Nem desejo receber de presente uma sonda na uretra. Como ela incomoda aos que sofrem da próstata. Muito menos um stoma, para que o alimento, impedido de ganhar o estômago pelas vias naturais, me mantenha vivo sem que possa dizer o contrário, apenas fechando ou abrindo os olhos baços em sinal de desagravo.
Não quero, em absoluto, ganhar de presente de desaniversario um caixão de defunto. Ainda me sinto jovem para me encontrar com meus pais do outro lado da vida.
E, um único desejo, quero deixar explícito, nestas linhas testamento, tenho dito e reedito o texto: “Quero, por favor, não me dêem presentes caros. Se quiserem me ofertar um carro novo, vocês sabem que não ando de carro. Detesto máquinas que pisam o asfalto com seus pneus fedorentos. Se quiserem me dar de presente de aniversário, nesta data nada especial, apenas mais um dentre tantos e tantos anos, mais um, me ofereçam, como eles não podem estar presentes junto a mim, a ausência dos meus pais me faz tanta falta, apenas me presenteiem com o sorriso lindo do meu neto, figurinha maiúscula, embora em idade minúscula, quatro meses apenas, a alegria de minha família, a ser reunida no dia de hoje, talvez a noite, no entorno de uma mesa de bar, ou noutro lugar qualquer. Com todos estes presentes, no tempo presente, por certo serei ainda mais feliz”…