Praga de defunto

Quando pilho alguém em fragrante delito, nem sei se se trata de delito leve, ou cabível de punição severa, com um cigarro entre os lábios, dele exalando não apenas mau cheiro, assim como um desfavor a saúde, digo sem pestanejar: “Cigarro faz mal. Ou mata ou pinta de negro seu pulmão, e logo vai levá-lo à sepultura”.

Grande parte das vezes o fumante responde, quase sempre tossindo: “Não importa. Vou morrer mesmo parando de fumar, mais dia ou menos, assim como o senhor, numa ocasião, perto ou longe, vai para o mesmo lugar. Ou enterrado numa cova escura, vendo o capim pela raiz, ou suas cinzas cuidarão de adubar algum jardim, talvez o do Éden, ou noutro lugar qualquer”.

Via de regra não retruco à admoestação impertinente, para ele, para mim não. E sigo adiante em passadas largas, correndo longas distâncias mesmo na iminência de completar meus bem maduros sessenta e sete anos bem vividos sem fumaça de cigarro (as resultado da poluição do ar são cada vez mais inevitáveis), as que tentam penetrar-me pela boca de dentes bem cuidados, se bem que algumas falhas existam, impeço-as de deixar entrar. Nem ao menos lhes faço um convite.

Em todas as partes do mundo as campanhas contra o fumo se distribuem por todas as partes. Nas ruas, portas de restaurantes, clínicas médicas, hospitais, igrejas ou capelinhas simplesinhas, até ao ar livre os fumantes são seres mal quistos, como uma praga de gafanhotos que tenta ceifar a plantação de grãos, de norte ao sul do país.

Sabido e ressabido os males que o cigarro provoca. Como urologista praticante, e ainda diletante, deixo aqui minha modesta contribuição referindo-me à nicotina como um mal sem cura. Até a brochura ela provoca. Não na encadernação de livros ou cadernos. E sim no sexo que falece quando o dono ainda é jovem, antes da idade em que a próstata incomoda, diga-se de passagem, após os quarenta anos de idade.

Conheço um cara, que não se trata de O Cara, o maioral, que sempre teve o cigarro como companhia indesejável fosse durante as noites fugidias, quanto nas madrugadas frias.

José Fulano de Tal, com quem me encontrava quase todos os dias, à porta da padaria central, sempre portava um cigarrinho aceso na ponta dos lábios finos.

Quando passava por ele José apagava a guimba quase finda. Quando virava as costas ele a reacendia.

Quantas e quantas vezes tentei demovê-lo do hábito de fumar. E ele me dizia, com aquele jeitinho de moleque arisco que um dia iria parar. Mas o tal dia nunca chegava.

Um parente perto do amigo Zé que nunca parava de fumar, era um não fumante convicto. Nunca levou nicotina viva aos lábios, um cigarro aceso então jamais foi capaz.

Os dois primos pouco se davam. Era um prum lado, outro “proutro”.

Zé Fumante, o tal Fulano de Tal, não conseguia largar o vício. Ainda bem que era apenas cigarro, não outra droga de efeito maior.

Ele chegou tão somente com um baita enfisema pulmonar aos oitenta e nove anos de idade. Ainda potente das coisas pendentes (aquele artefato conhecido por vários epítetos: bilau, pinto, pênis, pirunga, cobra que não fuma, perseguidor da perseguida, e uma infinidade de apelidos assas conhecidos do urologista).

Já o primo não fumante, conhecido na vizinhança como Pedro Sem Vício, não chegou aos cinquenta anos de idade. Morreu em plena saúde, fazendo exercícios numa academia perto de sua casa. Dizem, as más línguas, que o Pedro morreu de tanto falar para o primo parar de fumar.

Quando, no dia do sepultamento, muitas pessoas chorosas em volta do caixão, naquele velório principal do cemitério local, quem se interpôs à frente da gentalha que ora chorava, ora contava piada de defunto morto, foi o fumante convicto, que vivia com o cigarro aceso, que quando eu passava ele apagava logo, assim que eu virava as costas ele de novo dava uma última, última nada, tragada, foi o Zé Fulano de Tal, que não era O Cara, o maioral.

Ao olhar o primo estendido dentro do lindo caixão, enfeitado de flores lindas, recém saídas de um belo jardim, ninguém abriu o bolso para comprar nenhum buquê de flor, Zé sentiu algo estranho partir da boca do defunto morto.

Uma voz gutural, parecida a de assombração ou alma de outro mundo, vociferou fundo: “Zé do Fumo Quente. Cuidado daqui pra frente. Você não morreu até hoje de pura sorte. Experimente parar de fumar a partir de agora”.

Zé Fulano de Tal, fumante inveterado e inconvencivel, de que fumo faz mal, assim que deixou o velório, enterrado o defunto mortinho da silva, embora não fosse esse seu sobrenome, tossindo que nem cachorro com o peito cheio de bronquiolite aguda, veio um carro, em alta velocidade, pilhou o pobre Zé em cheio na parte de trás, sem bunda ou traseiro que prestasse, e o partiu em dez partes.

Em seu velório, muito mais concorrido que o do amigo primo sem vícios, o caixão foi enfeitado com milhares de guimbas de cigarro, apagadas, tenho dito.

Donde acabo de pensar, sem muitas delongas compridas, foi ou não foi praga de defunto morto?

 

 

 

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