Deveria tê-lo deixado voar

Quem pensa que voar é para os pássaros se engana.

Eu mesmo avoo todas as manhãs. Aqui mesmo. Na minha oficina de trabalho. Dando vazão a avassaladora correnteza de inspiração que me cavouca a cada dia.

Não fossem elas não sei o que seria de mim.

Graças aos meus escritos me desprendo do chão. Vou as alturas.

Aproveito as correntes de ar como os urubus. Não só lhes admiro o voo como me dá uma vontade imensa de ganhar os ares. Desprender-me do solo e ir mais alto que a lua e quem sabe chegar as estrelas. Um dia me tornar uma delas. Vivendo eternamente brilhando timidamente sem ofuscar-lhes o brilho. Como um vagalumezinho a iluminar as noites escuras da minha roça.

Certos pássaros avoam livres pelos ares. Outros não têm a ventura de viver nas alturas. Pois são filhos de chocadeiras. E desde filhotinhos crescem em gaiolas e aprendem a cantar mesmo prisioneiros.

Por que pássaros cantam mesmo trancafiados em gaiolas? Seriam felizes assim?

Se  porventura os  soltássemos eles cantariam empoleirados nos galhos de uma jabuticabeira? Como sabiás com seus trinados lindos. Ou outros pássaros canoros?

Não tenho tido sorte com os passarinhos presos em gaiolas que um dia passaram pela minha vida.

Na minha casa mais ao alto da cidade tive alguns.

Trinca ferros, azulões, até mesmo canarinhos belgas. Dias, não tão distantes, acordava com sua cantoria pertinho do meu quarto de dormir.

Zé Amâncio, um lindo trinca ferro, presente de minha esposa, viveu ao meu lado cerca de alguns anos. E acabou morrendo de repente. Encontrei-o estendido no fundo de sua gaiola. Não sei o motivo de sua morte. Ele sempre me pareceu saudável. E sua cantoria me encantava sempre.

Outros trincas passaram por mim e deixaram boas lembranças. Creio que eles todos hoje cantam e encantam no céu dos pássaros.

Vitinho, um canarinho amarelinho, viveu tempos na roça. Sempre que lá chegava via-o cantar. E como ele alegrava minhas manhãs ensolaradas. De repente não mais o encontrei.

Disseram-me que ele foi presa fácil de uma coruja. Que, durante a noite entrou gaiola adentro e o levou a alimentar seus filhotes.  Nunca mais o vi.

Passaram-se anos. Meses deixaram rastros.

Há cerca de dois meses passados, caminhando rua abaixo, ouvi o canto de um canarinho numa gaiola suspensa numa casa onde se vendem livros.

Entrei porta adentro. Perguntei ao dono daquele canarinho quanto era seu preço.

Paguei com uma nota de cem reais com a gaiola e tudo mais.

E levei meu canarinho pra casa. Dei-lhe o nome de Vitinho em consideração aquele da minha roça.

E passamos a ser bons amigos.

Vitinho vivia dependurado na janela do lado de fora da minha cozinha. Cantava sempre. E nos encantava diuturnamente.

Ângela, minha amiga e conselheira sobre pássaros canoros, era quem o alimentava, já que eu deixava meu apartamento bem cedo.

Um dia, na intenção de atenuar a solidão em que Vitinho se encontrava, trouxe mais dois amiguinhos para fazer-lhe companhia. Um periquitinho verde e amarelo, ao qual nomeei de Dinho. E uma calopsita de topetinho amarelo e penas verdes a qual dei o nome de Tico. Não sabia se ela era ele ou ela.

E os três viviam em perfeita harmonia até a minha viagem que terminou no dia de ontem.

Não tinha onde deixar os três. No dia anterior enchi a vasilha de ração até a boca.

Água com fartura foi deixada no recipiente apropriado.

Bem cedo despedi-me dos três.

Vitinho olhou-me nos olhos com doçura. E entendi que ele queria que eu o soltasse da gaiola.

Só não o fiz por preocupar-me para onde ele iria. Ele, acostumado a viver engaiolado, mal sabia avoar.

Deixei os três pensando na volta.

Dez dias se passaram. [

Uma preocupação me atazanava durante os dez dias de ausência. O bem estar deles me apoquentava.

Enfim cheguei. Abri a porta do apartamento. O Tico e o Dinho me saudaram com a mesma gritaria costumeira. Como sempre famintos.

Já a outra gaiola, onde morava o Vitinho, se mostrava vazia.

No mesmo instante, ao abrir a portinhola, encontrei um bilhete de despedida.

“ Meu amigo doutor. Enfim avoei. Nunca o havia feito. Agora moro no céu dos canarinhos. Canto de alegria. Antes cantava de tristeza”.

Em verdade Vitinho acabou morrendo. A causa mortis foi tristeza.

A partir de então nunca mais terei outro passarinho engaiolado.

Antes da minha partida não entendi aquele olhar desconsolado do meu canarinho. Ele em verdade dizia: “ deixe-me voar.”

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