Antes, quando vim a essa cidade, a qual considero minha embora não tenha nascido aqui, ávido por trabalhar, depois de longos anos me especializando, um ano inteiro passado na Espanha, pensava, por ser o primeiro especialista em Urologia, aqui ficar solitário operando incansavelmente nos três hospitais.
Foram mais de vinte anos sem saber qual a cor e o sabor de uma noite de sono.
Aquele telefone negro tilintava nos meus ouvidos. Era uma enfermeira com sua voz baixinha. Que me dizia encabulada: “ doutor, seu paciente operado ontem de próstata do aparamento 304 teve sua sonda entupida. Não foi por descuido nosso. Ele, inquieto se levantou da cama sem dizer a ninguém. E foi ao banheiro antes da meia noite. E ao voltar sozinho seu acompanhante dormia. Daí o acontecido. Venha logo antes que ele saia correndo do hospital”.
E lá ia eu. Por vezes tinha de reoperá-lo. Abrir novamente sua bexiga repleta de coágulos. Felizmente tudo não passou de um entrevero. Incidentes que acontecem quase sempre. Pois complicações cirúrgicas só não as tem quem não se mete a cirurgião.
Assim foram tempos sofridos mas recheados de prazer por ter devolvido a saúde àqueles que dela se viram privados.
No entanto, passados esses vinte anos, apareceu mais um colega de farda para repartir todo o trabalho que me fazia não somente perder o sono como também construir parte do meu patrimônio.
Ele ficava num hospital e eu no noutro.
Acostumei-me a operar com um enfermeiro por mim treinado. Colegas poucas vezes entraram comigo em operações.
Assim permaneci só por mais tantos anos.
Eram tempos quando ainda pensava ser o dono do bisturi.
Agora, felizmente mais jovens especialistas chegaram a nossa cidade. Eles, com suas juventudes injetaram sangue novo em minhas artérias ainda não entupidas.
Tenho por eles não apenas respeito como profunda admiração.
Agora, ainda longe de me aposentar por completo, revigorado pela presença de gente nova.
Dou-me o prazer de fazer apenas o que me apraz.
Não mais faço plantões. No meu consultório chego bem cedo. Escrevo antes das oito. Atendo a parir de então.
Se me pedirem ajuda não nego. Ofereço meus préstimos aquele que precisar.
Em absoluto o brilho de outrem não ofusca o meu.
Quando algum paciente me procura e diz: “ doutor. Já passei pelo seu colega e ele me afirmou que minha doença deve ser operada antes que o mal cresça. Eu, depois de examiná-lo criteriosamente, digo que ele deve esperar mais um pouquinho que a pedra pode sair espontaneamente. Sem desacreditar o colega obviamente”.
Aprendi a conjugar esforços em prol do mesmo paciente. Que mal que faz ouvir outra opinião? Duas cabeças pensam melhor que uma só.
Antes pensava ser melhor ficar só. Que meu brilho fosse capaz de iluminar a cidade inteira e os arrabaldes.
Agora, depois de quase cinquenta anos de graduado entendo que o brilho de terceiros ajudam a iluminar o meu caminho.