Depois de certa idade tenho a noite como perda de tempo.
Pra que ficar quase oito horas de olhos fechados sem poder enxergar o despertar do sol e nem mesmo o brilho das estrelas?
Pra que perder tanto tempo se ele é tão precioso. E permanecer horas a fio sem nada a fazer a não ser dormir.
Advogam os defensores da noite que ela é essencial para o descanso. O repouso faz falta. A escuridão no entanto me intimida.
Muitos dizem ser a noite um manancial inesgotável de sonhos. Mas eu vivo sonhando mesmo ao clarume dos dias.
Já sabem meus leitores que a inspiração me cavouca durante as madrugadas.
Antes das quatro meus olhos se abrem.
A contragosto fico na cama para não importunar quem ainda dorme ao meu lado.
Mas logo logo a cama me repele. Pulo do colchão sem deixar os lençóis acordarem.
O travesseiro ressona. Os cobertores, nestes tempos frios, continuam a dormir.
A seguir vou ao cômodo de banhos. Evito em primeiro lugar me olhar no espelho. Não o tenho em bom grado.
Ele, alcagueta malicioso, quando me olha logo diz: “cuidados com os pés de galinha que ciscam ao derredor de seus olhos. Seus cabelos, pra onde foram? Não acha melhor tintar as cãs que sobraram com a tinta usada por sua esposa”?
E eu nem me lixo a sua língua espelhada. Simplesmente lavo minha face enrugada e me assento ao trono. Sei que não sou rei. Nem ao menos príncipe mas tenho muita sorte. Meu intestino funciona como um reloginho pontualmente.
Visto a mesma roupa dependurada no cabide usada no dia de ontem. Assim evito jogar no saco de roupa suja vestes ainda limpas. Minimizo o trabalho de minha amiga Ângela.
Chega enfim a hora de deixar meu apartamento. Abro a porta do Edificio das Clínicas onde ainda atendo. Só a partir das oito.
Prestes a completar cinquenta anos de graduado. Mais um ano apenas. Conto nos dedos quarenta e seis desde que nesta cidade apeei. Chega uma hora que as noites não são feitas para descansar. E muito menos simplesmente para sonhar.
Enfim é chegada a hora de refletir sobre o tempo passado. Foram anos bons. Melhores aqueles quando tinha meus pais por perto.
Após tanto viver, tanta correria pelos descaminhos de minha profissão, é chegada a hora de refrear as rédeas deste senhor ainda não alquebrado em anos. Sinto-me ainda capaz de fazer melhor tudo que fazia antes. Mas, obedecendo ao instinto natural da espécie humana, obedecendo a ordem natural das coisas, sei que o mundo pertence aos jovens.
E bem sei que minha juventude se foi. Pra onde foram meus vinte anos? E os trinta? Eles deixaram suas pegadas há mais de quarenta anos atrás.
Bem sei que é chegada a hora atenuar meu ímpeto de tanto operar. Agora me contento em cirurgias menores. As maiores deixo a cargo dos mais jovens.
Chegou a hora deixar pra trás aqueles anos quando não tinha tempo de escrever tanto. E não ter tempo para me dedicar a atividade física. Mente sã em corpo são.
É chegada a hora da partida? Pra outra vida não.
Chegou a hora sim. De conhecer novos lugares. De publicar outros livros. De enriquecer meus conhecimentos. De aprender sempre.
E, quando chegar a hora de partir rumo ao desconhecido, espero estar preparado.
Que seja sem dor. Sem causar sofrimento aos que me acompanham.
E, uma vez chegada àquela hora, aquele derradeiro momento, as pessoas que se lembrarem de mim, o façam dizendo: “ que bom médico ele foi. Como gostava dos textos que ele deixou escritos”.
Ainda não chegou aquela hora. E nem penso nela.
E quando aquela hora chegar. Que seja numa hora bem depois de agora…