Experimente, você, que tem a fortuna de enxergar, de olhos fechados caminhar pelas ruas, com uma bengala, como deficientes visuais se acostumaram.
Não vai conseguir dar alguns passos sem cair. Ou se desequilibrar. Em pouco tempo alguém vai lhe oferecer os préstimos. E você, sem jeito, vai novamente abrir seus olhos. E dizer: “ por favor, meu bom Deus. Não me prive dessa faculdade. Pra mim tão vital como a vida que o Senhor me fez presente. Caso um dia seja privado da visão melhor não mais existir”.
Mas, como tantas vezes ajudei a um cego a atravessar a rua, oferecendo-lhe meu antebraço como apoio. E ele sorridente me agradeceu. Imagino que viver na escuridão não seja tão ruim assim.
Com muita propriedade dizem que o pior cego é aquele que se recusa a enxergar. E vive tropeçando nas palavras, dotado de uma visão acurada, sem no entanto estudar ou tentar aprender tantas belezas que a vida ao derredor de nossos olhos nos traz.
Eu vivo feliz graças a minha capacidade de transcrever em palavras tudo que o cotidiano me ensina.
Deixo transcrito a beleza do voo dos pássaros. O despencar das folhar mortas de uma árvore que se desfolha no outono para de novo se vestir de flores na primavera. O carinho do abraço de uma mãe ao seu filho quando ele volta da escola. O despertar do sol nestas madrugadas frias de inverno. O anoitecer bucólico na roça que tanto amo. O ar de espanto daquela criança ao ver seu avozinho deixar sua dentadura dormir num copo cheio d’água no criado mudo ao lado da cama.
Pra gente, dotado de uma visão, perfeita, fechar os olhos de vez em quando até que não faz tanto mal. Mas sermos privados de enxergar o clarume dos dias ao acordarmos, uma vez de janelas abertas, deve ser tão cruel quanto deixarmos ao desabrigo um cãozinho um dia adotado.
Podemos fechar os olhos ao dormir. Mas, abri-los de novo, e ver o dia despertar, a chuva cair, a noite chegar, pra mim nada mais bonito.
Como sempre, caminhando pelas ruas, sempre o faço de olhos abertos, sempre, deparo-me com tantas coisas que me enxovalham de tristeza meus olhos enxergadores.
Ontem mesmo, ao passar defronte à igreja matriz, percebi uma mãe com sua filhinha nos braços. Ela amamentava a criança. E implorava, de mãos estendidas, que a ela déssemos uma quantia qualquer para que comprasse fraldas para sua filhinha de poucos meses apenas. Não pude fechar os olhos e não parar um instante para deixar em sua mão uma nota de dez reais. Pra mim esse dinheiro não iria fazer falta. Pra ela sim.
Mais adiante, na parte da tarde, a caminho do clube onde me exercito, vi um sem teto dormindo estendido na calçada. Tive de saltar sobre aquele corpo inerme. Outras pessoas fizeram o mesmo. Não me permito fechar os olhos sobre a situação de penúria por que passam incontáveis brasileiros. Pedintes esmolam mais e mais. O desemprego crescente assalta-me a dignidade.
Dizem ser a saúde um direito de todos e dever do estado. Não é o que acontece à porta dos hospitais. Pacientes esperam meses, anos, para serem operados. Quem não tem plano de saúde recorre ao mesmo estado. E penam para terem seus males sanados ou remediados. Não é possível fechar os olhos a essa verdade.
Conquanto famílias abastadas celebram aniversário de filhos e netos em festas de alto padrão. Outras mal conseguem vencer o mês com o salário de fome que o pai percebe. Não posso fechar os olhos a essas contradições.
Estou de olhos abertos a tudo isso. Se os fecho me contradigo ao dizer que tudo vai bem.
Não uso tapa olhos como aquela mula que puxa carroça.
Permito ver além das entrelinhas.
Não esquivo nem me desvio de nossa realidade.
Abro bem meus olhos. Se os fechar posso ir de encontro ao que penso e escrevo.
Meus olhos sempre estão bem abertos.
E, se os virem fechados podem ter certeza que eu não mais faço parte desse mundo.