” Sinto falta daquele cutucão no pé”

Nos meus mais de setenta anos não me separo das minhas lembranças.

E como sinto falta dos meus vinte anos. Daquela casa hoje reduzida a um lote vazio quanta falta ela me faz. Dos meus pais nem digo. Dos amigos de infância tantos se foram mas ficaram perenizados aqui dentro. Guardados dentro do meu coração lotado de sentimentos.

Sinto falta, depois de tantos natais passados, daquela bicicletinha de rodinhas amarelas que  me foi presenteada num dia inesquecível quase findo dezembro. Não consegui fechar os olhos naquela véspera de Natal. Ainda cria em Papai Noel. Pena que essa crença se transformou em descrença nos dias de agora.

Sinto tanta falta dos bons tempos da escola. A mesma onde meus dois netinhos estudam agora. Dizem, com muita propriedade- a gente sai do Gammon mas ele não sai de dentro de nós.

Falta-me aquela merendeira recheada de guloseimas que minha mãezinha fazia. Não via a hora de chegar o recreio para provar aquela broa de milho recheada com queijo acompanhada de uma sodinha de abacaxi que até hoje não fico sem.

Sinto imensamente falta dos tempos de outrora quando  não existia o tal celular. Um aparelhinho que os garotos de agora não dispensam nem na hora de conversar com a gente.

Sinto falta das repreensões que levávamos quando pilhados nalguma travessura. E das varas de marmelo e cintos afivelados que deixavam marcas em nossos traseiros desnudos.

Sinto falta de tanta coisa… Só um pequeno detalhe faz-me amenizar a saudade dos idos anos. É que posso me lembrar deles escrevendo minhas memórias.

Tenho um amigo, infelizmente já falecido, cujo nome era Teodoro.

Era meu vizinho de cerca. Gente amistosa cujo sorriso nunca estava ausente mesmo quando a sua melhor vaca sumia numa matinha ensombrada. Recém parida e ali amoitada tentando esconder sua cria dos animais de duas patas.

Seu Teodoro era uma pessoinha admirada  por todos que o conheciam.

Fotografias antigas eram mostradas na parede de sua sala. Ele, de terno cinza, ao lado de sua esposa da qual nunca se desgrudava. Eram casados há mais de sessenta anos. Tiveram seis filhos e duas dezenas de netos todos eles assentados ao seu derredor.

Aquele senhor era a prova viva que um nasceu para o outro. Se alguém faltasse com o respeito a dona Maria que Deus o livrasse do castigo mais que merecido. Essa pessoa era logo execrada da comunidade como uma pessoa não grata. E tinha de se mudar pra outras bandas bem longe dali.

Um dia aconteceu o inevitável.

Dona Maria amanheceu enferma. Seu Teodoro, rijo como cerne de amoreira, nunca até então caiu enfermo. Fora uma gripinha ou outra nada lhe fazia queixar de dores ou qualquer incômodo que persistisse por mais de uma semana.  Cama, pra ele, era lugar de só fazer amor.

Vendo a sua amada esposa num leito de hospital Teodoro dali não arredou um dia sequer.

Numa noite de inverno sua amada Maria foi chamada a dormir no céu.

Não carece dizer a tristeza que se apoderou do pobre Seu Teodoro. Quem o visse dantes não o reconheceria. Magro, olheiras profundas marcavam-lhe o semblante desconsolado.

Um ano avoou veloz como as asas de um beija flor.

O pobre Teodoro passava os dias numa tristeza profunda de dar dó. Nada o fazia sorrir.

Avizinhava-se o mês de junho. Com ele o frio mostrava fumaça saindo pela boca.

A roça, antes tão bem cuidada, agora parecia um sarandi desolado.

A vacada foi vendida num leitão de gado.

Muitos diziam que o pobre viúvo acabaria vendendo sua propriedade.

Foi quando fiz uma visita ao infeliz Teodoro. Ainda me lembro de sua cara de tristeza naquela tarde quase noite.

Encontrei-o cabisbaixo assentado à soleira da porta. Ele quase não me reconheceu.

Era a expressão exata da tristeza.

Numa tentativa de retirá-lo de sua melancolia tentei animá-lo contando-lhe as novidades da cidade: “ e aí Teodoro. Não mais vai à missa? Antes ia todos os domingos com sua Maria. Agora não o tenho visto por lá. Apareça. Toma um cafezinho comigo. E nem precisa anunciar. Sua presença sempre é bem vinda”.

Mas ele nada de sair de sua tristeza que era visível em sua postura melancólica.

Quase me despedindo, pois já escurecia, e eu precisava voltar, enfim o velho Teodoro, sentindo que seu amigo ia embora, me disse, com sua voz embargada pela emoção: “como sinto falta daquele cutucão gostoso que minha amada Maria me fazia antes de dormir. Agora não a tenho mais ao meu lado. Que Deus me leve logo pra junto dela. Não vejo a hora de me despedir da vida”.

Um mês depois Deus ouviu as suas preces.

Agora penso que os dois devem estar cutucando seus pés desnudos por baixo de um cobertor de nuvens lá no céu.

 

 

 

 

 

 

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