Frio de enregelar orelhas

E quem as tem em abano? Como as do elefantinho Dumbo? As duas orelhas se transformam em duas pedras de gelo? E podem se quebrar neste inverno gelado?

Nem bem o inverno mostrou sua cara e a friaca começou. Pra gente que tem a sorte de morar em casas protegidas contra a friagem que o vento leva em seus assopros frios nada a reclamar. Mas os pobres desventurados moradores de rua, os sem tetos que dormem ao relento tentando se proteger do frio intenso o inverno castiga como as palmadas que levamos nos fundilhos quando ainda meninos sapecas desobedientes como fomos em tempos pregressos.

Bem sei dos apuros que os valentes homens da roça que levantam em plena madrugada antes mesmo que o padeiro madrugão acorda para fazer nosso pão. E ele tem de sob uma cerração intensa procurar a Braúna extraviada numa matinha escondida depois de parir sua linda bezerrinha que logo se levanta para chupar as tetas de sua mãe. E ele tem de levá-la ao curral para dela retirar o colostro rico em proteínas.  E a vacada faminta berra descontente por faltar a ração que mais uma vez sobe as alturas. E o preço do leito abaixa às baixuras.

E sob um frio intenso outra vaca urina no balde cheio de leite. Um bezerrinho atado as patas traseiras de sua mãe arisco se solta e berra dizendo pra deixar dois peitos a ele. E outro do lado foge às carreiras abre a porteira e deixa as outras vacas entrarem sem ser a hora.

O pobre retireiro cujo nome é Aristeu. Mas é chamado de Tonho. Não sei de onde veio seu outro nome. Na escola era chamado de Aristeu Orelhudo. Já sabem a razão de tal apelido.

Uma orelha, a direita, tinha por medida trinta centímetros de ponta a ponta.

A do outro lado media mais da metade. Uma era vergada pra cima e a segundo empinada pra baixo.

Mas a audição do Aristeu Orelhudo era perfeita. Se alguém soltasse um pum há quilômetros de lonjura ele escutava. Se por acaso outro batesse as mãos fora da audição de outro qualquer Aristeu logo percebia o barulho.

Como cães ele sofria com os foguetes nas festas juninas. Não se o via quando os fogos estouravam pois ele tapava as duas orelhas com as palmas das mãos escondidinho que ficava debaixo da cama.

Aristeu era pau pra toda obra. Era bom para carpir mato antes que a pastaria se tornasse um sarandi. Com a enxada era um capinador de mancheia.

E com aquele par de orelhas que o destacavam pelo tamanho não carece dizer que ele escutava além da conta.

Só um pequeno detalhe o fazia diferente dos demais.

Aristeu detestava o tempo frio.

Se dava bem no calor dos trópicos. No inverno, uma vez apenas escafedeu-se a uma praia, para tomar banho de mar.

Quem estava presente, e o viu nadar, as más línguas diziam que ele usava as orelhas para boiar.

Mas como eu não estava não posso referendar.

Eis que chega o inverno. A seca vem em sua companhia.

Adeus lama na estrada e mal vinda poeira. A relva ressente-se da falta de chuva.

A silagem dá indicio de escassear.

Em plena entressafra o preço do litro de leite despenca. E a vacada de costelas a mostra se enche de bernes e a carrapatada faz a festa.

A renda do Aristeu, que já era pouca, aí sim se reduz a quase nada. Mal dá pra comprar na venda do Antenor o suficiente para se manter de pé ainda vivo. E a idade lhe tropeça na cacunda indicando que ele chegou a ser chamado idoso.

“Velho não!” Retruca quando alguém o chama assim.

Mas se o tirarem dali e o levarem pra cidade não sei quantos anos mais iria durar.

Fiz-lhe uma visitinha rápida ao passar por caso naquele lugar ermo num final de semana de volta da minha rocinha.

Era mais ou menos quatro e meia da tarde quase dia morto.

A temperatura oscilava entre cinco e dez graus ao sol. Quando ele tinha coragem de mostrar a cara amarela por entre nuvens cinzentas.

Era uma friagem de fazer esquimó se aquecer numa fogueira alta como a de Ingaí (antes Pinheirinho) .

Naquela hora não tanto tardia Aristeu começava a ordenha.

Estranhei-lhe a aparência.

A sua cor estava azulada. Não tão branquinho como sempre o via. As suas mãos duras de frio. Elas mal podiam espremer as tetas das vacas de tão rijas que se mostravam.

Aristeu mal me dirigiu duas palavrinhas quando a ele perguntei como iam as modas.

Simplesmente assentou-se àquele banquinho tripé e voltou a tirar seu leitinho.

Ao me despedir olhei em direção ao que sobrou de suas orelhas orelhudas.

A direita, a maior das duas, havia se transformado num enorme iceberg. Bem maior que aquele que fez afundar o Titanic. E ela se partiu em duas provocando quase uma enchente ao cair ao chão. A esquerda, azul de frio, acabou enregelando como a outra. Mas ela permaneceu grudada a cabeça do pobre Aristeu que acabou deixando as suas vacas sem tirar leite e se recolheu ao leito para dormir e sonhar com a mentirada que acabei de contar a vocês.

 

 

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