Não pesquisando a opinião dos entendedores de vento, a exemplo os meteorologistas, os que estudam o vento, e sim com o coração de um poeta, quase isso, um reles cronista que sente e se ressente quando a sensibilidade claudica, hoje, durante a noite povoada de sonhos escuros, não choveu durante a madrugada, o frio entrou durante a noite com seu vento estrepitoso, desfolhando as folhas vivas da seringueira sorridente que do lado de fora da minha janela parece ter sonhado com a Amazônia, sua pátria amada, acordei com uma estranha sensação de angústia por dentro do peito.
Um sentimento incomum me fazia sentir nostálgico.
Pensei em todas as eventualidades que poderiam ter contribuído para tal atitude que me atormentava o âmago. Teria sido um mal de amor? Uma paixão mal solucionada? Uma angústia inexplicada? Ou algo mais indefinido, pois, para os poetas, os sensíveis, a gente pode deitar de um jeito e se levantar aos tropeços, sentindo uma tristeza irreparável, uma dor incomparável, como se um punhal imaginário nos ensartasse o peito com sua lâmina afiada, não deixando rastros de sangue por onde a ponta da faca pontuda penetrou-nos a alma impura e cheia de angústias passadas.
O que seria o vento na opinião desatenta dos poetas e caboclinhos da roça, aqueles meninos espertos, tímidos, que se escondem à sombra das árvores velhuscas para tentarem encobrir as diabruras dos pais trabalhadores, que não têm tempo de conversar com os filhos menores, sobretudo aqueles que nasceram com todo o aspecto de macho, no entanto, enfrentando, aquelas alminhas puras que vieram ao mundo sem saber o que o destino traçou no seu caminho errático, pois ao invés de serem do sexo masculino nada mais eram do que frustrados machos travestidos em pele de cordeiro fêmea. Ao invés de meninos, eram em verdade verdadeira meninas sonhando retocar a pele sedosa com pó de arroz e pintar os cílios longos com rimel preto, usando nos cabelos compridos uma toca de alisamento.
Assim cresceu e se desenvolveu, se bem que pouco, o nosso personagem da crônica de hoje.
Ao nascimento, acontecido em meados de dezembro, quase véspera do Natal, o pequeno Antônio, Tonico para os mais chegados, acorreram poucos parentes.
Uma tia torta, uma amiga da mãe sempre enferma, o pai desconfiado da opção sexual do único filho varão (de varão só tinha aquele artifício pequenino por entre as perninhas finas, por cima das bolas pouco desenvolvidas, poder-se-ia dizer atróficas), que em breve perderiam a serventia, logo se transformariam em uma cavidade de nome vagina, o corpo de quase macho experimentaria gradativa mutação, perderia os pelos, apontariam seios, minúsculos, a voz ficaria fina e macia, os pelinhos da face pouco a pouco sumiriam, e o menino de sexo duvidoso mudaria a carteira de identidade de Antônio, vulgo Tonico para Antônia, mais conhecida por Toninha.
Quiseram os anos e os desenganos que o que restou da família rural do pequeno Tonico, já em vias de se metamorfosear de macho a fêmea, rechaçasse o rebento do lar. Na roça não tinha espaço para afeminados, ainda mais transformistas, naquelas plagas onde as mulheres não tinham futuro, imaginem os de opção sexual modificada, como no caso do desinfeliz Antônio.
Aos pouco mais de vinte anos Antônia se viu no pasto da amargura solitária. Queria se casar de véu e grinalda com um vizinho de cerca furada. Um garanhão bicho do mato, que por falta de coisa melhor acabou se acasalando com a pobre menina que não veio ao mundo da forma pretendida.
Mas o consórcio infelizmente não aconteceu. Não por culpa de ninguém, e sim deles próprios, que perderam a carona no caminhão de leite que atolou no barro do morro topetudo por onde subia sempre, nas manhãs de cada dia.
Antônia foi viver na cidade perto. Onde se travestilizou de vez.
Fazia ponto numa esquina famosa pelas mulheres de vida fácil, ledo engano, que vida difícil levavam as prostitutas!, rodando bolsinhas, vendendo o corpo num mercado cada vez mais concorrido, onde as garotas de programa mais bem dotadas de formosura eram as mais assediadas pelos caçadores de sexo inseguro.
Antônia, oriunda da roça, poetinha amargurada e inquiridora, sempre aberta às coisas e loisas da vida, atenta como um passarinho angustiado pela perda da mãe bem antes de estar preparado para um vôo solo, começou a escrever poesia.
Eram poemas de rica sensibilidade. Que falavam de amores não correspondidos, das tristezas da vida errática das mulheres da vida, suas companheiras e competidoras na arte de comercializar ou vender amor.
Foi quando, numa dessas madrugadas frias, durante o trottoir, a encontrei pela sarjeta, tentando passar o corpo de quase mulher feita adiante.
Não tinha a intenção de fazer amor com ela. Não era meu tipo de mulher, como é a minha.
Como já era tarde, noite escura, fria, para tentar agradar à moça, já não tão moça, quase balzaquiana, apenas a conhecia por Antônia, fiz-lhe de chofre uma pergunta: “O que seria o vento”?
Ela parou, olhou-me fundo nos olhos, e respondeu, sem apertar os olhinhos escuros: “O senhor deseja saber o que é o vento? Eu não invento, falo o que meu coração diz. O vento nada mais é do que um murmúrio ruidoso que nasce de dentro do peito. Principalmente aquele que sofre. De qualquer mal de amor. O tal vento, uma vez emerso do nosso âmago, não consegue ficar ali trancafiado. Ele foge de dentro da gente. Sai estrepitosamente. E desaparece num suspiro de dor”.
Deixei a amargurada dama da noite entregue aos seus pensamentos. Quem sabe de fato diagnosticar o significado do vento não são os meteorologistas, ou os entendedores de fenômenos climáticos. Quem melhor define o vento são os poetas, e os que sofrem de mal de amor.