Adeus a um amigo

As festas de fim de ano se aproximam com a velocidade do vento que assopra raivoso por cima daquela colina. Famílias inteiras pretendem se reunir, o que resta delas, alguns filhos queridos, pais amantíssimos que não mais estarão presentes, de cima espreitam os consanguíneos velando por seus sucessos, avós que já se foram faz tempo da mesma forma manifestando do alto toda a saudade presente, tios, primos que partiram precocemente, muitos contrariaram a lei dos homens enterrando os filhos, quer dor maior neste mundo?

Descendo ou subindo a rua nesta segunda feira, dia 28 de novembro, ontem fez anos meu único irmão, em sete de dezembro será minha vez de colher mais uma experiência de vida, o que serão sessenta e sete primaveras perto da idade em que viveu com fecundidade, diz a história bíblica, o velho Matusalém, nada mais, nada menos, percebi, pelas ruas já apinhadas de gente rumo ao trabalho, um desvelo, um abandono desvairado das ruas, das pequenas praças, passeios imundos, na falta de garis da limpeza urbana, o asfalto recheado de buracos causados pelas chuvas recentes, que não tardam a voltar, um pracinha de nome Praça dos Trabalhadores, onde tomo meu cafezinho frugal, uma grama alta, sem sinais de poda fazia tempo, onde perfeitamente poder-se-ia alimentar dois ou mais cavalos famintos, ou uma dezena de vacas leiteiras, sinal evidente de descaso da prefeitura ausente, que sai em pouco mais de um mês, tomara antes.

Durante a noite em boa companhia da minha companheira querida, uma das razões maiores de estar ainda vivo, sonhei, ou teria simplesmente pensado dormindo, nos amigos que perdi com certa precocidade até hoje, não sei precisar com precisão quantos ou quais foram, sei nomear com exatidão do Januário, primo irmão, o Gibinha, colega companheiro de folguedos, o Zé Arlei, apelidado de Tampinha dada a sua altura não tão espichada, e outros amigos que aqui esparramei, deles todos sinto um vazio enorme dentro do oco que se esconde dentro do peito, ao lado do coração.

Isso sem deixar de comentar outros amigos não pessoas, animais de quatro patas, fiéis, companheiros distintos dos de duas pernas, mas da mesma forma tão importantes, que durante suas curtas existências prestaram-me enorme serviço, latidores convictos, ou aqueles animais pela maioria esmagadora considerados a mais bela espécime de animal vivo, os cavalos de cores várias, de pelagens distintas, de marchas as mais diversificadas, de condutas ilibadas, os quais de quando em vez escoiceavam e mordiam o dono num sinal de desagravo pelos maus tratos que receberam.

Nesta crônica de hoje quero deixar de lado os cachorros. Eles foram, e ainda são, tão importantes na minha vida que nem sei mensurar o peso e a medida, quanto mais ao se considerar fidelidade e amizade, talvez sejam incomparáveis entre todos os amigos que aqui deixei.

Mas desejo, neste breve texto, prestar minha rica homenagem ao Rebel, um viralatinha que deu sua própria vida em defesa de mim criança, numa briga de rua, com um cão bem maior que sua coragem que não faleceu como com ele ocorreu.

Aos dois dálmatas que mais tarde fizeram parte uníssona e afinada de minha morada perto da casa onde viveram meus pais, ao meu enorme canzarrão, um dog alemão, albino, ou ao pastor alemão, todos mortos devido a uma virose maldita, a tal Pavo Virose, enfermidade sem tratamento, que judia com os canídeos, os leva a uma despedida lenta, cheia de sofrimento.

O Willie, um York Shire fujão, que não parava em nenhum lar, que adorava ser cão de rua, sempre em busca de uma fêmea, de sua raça na intenção de procriar, que, quando mudei de casa para onde estou, não se ajeitou naquele condomínio elegante, vivia a ladrar durante a noite, e numa linda noite de céu estrelado acabou por viralatar de vez, escapando dos fundos da minha casa sem ao menos se despedir do seu amigo doutor.

A seguir, depois de tempos e tempos que longe se vão, passei a ter outros cães de porte médio, inteligentes e corredores, cães de pastoreio, de nome Border Collies, que viveram longe de minha casa na cidade, os dois primeiros em minha roça no município de Ijaci, e o derradeiro, espero que esse fique por muitos anos ao meu lado, embora não viva tão perto, de nome Pirunguinha, um intrépido perseguidor de bichos do mato, que de repente, sem motivo aparente, tem se afastado de mim. Os dois Paulos Rosas, se foram, deixaram saudades imorredouras, como ainda sinto-lhes a falta!

Mas este amigo, ao qual dediquei menos amizade, ele mais me prestou serviços na minha roça querida, agora cuidada por um amigo, ao qual arrendei meu pedaço de prejuízo, num momento marcante de minha vida, cansado de levar desvantagem no comércio de leite, que o digam os retireiros tantos que me passaram pela carteira assinada, a maior parte deles não fez juz ao salário, em tempos recentes acabou sendo passado adiante.

Seu nome, sem sobrenome, era Marreta.

Um enorme cavalo eunuco, possante em puxar carroça, que levava sem muito esforço cinco ou mais latões cheios de leite morro acima, isso quando o caminhão pipa não conseguia descer o morro agudo em tempos de estrada molhada pelas chuvas de fim de ano.

Na minha rocinha pequena, onde a vaca deita e deixa o rabo de fora da cerca, não existia trator.

Por isso era o Marreta o faz tudo. Puxava esterco para fertilizar a roça de milho antes da planta, ia à capineira trazer capim cortado a podão pelo meu retireiro, o Dé do boné furado, gasto pelos anos todos de uso, por onde nasceu um pezinho de milho novinho, juro ser verdade verdadeira, não uma das tantas invencionices minhas, e ainda, se não bastasse tanta e tanta serventia, permitia ser cavalgado a pelo, naquela marcha trotona, que fazia chacolejar o cavaleiro.

Mas o tempo passou. Verões tomaram o tempo da primavera. O inverno deixou seu espaço frio ao outono, e eu envelheci mais e mais.

A minha roça agora foi alugada a quem entende de animais, de vacas principalmente.

O dono da minha roça, que mora na casa na qual um dia pouco dormi, contando os vagalumes piscantes nas noites escuras, tem um trator para fazer o serviço do velho eunuco Marreta.

Ele, meu cavalo usado em tração animal se tornou obsoleto.

Ficava folgado no pasto comendo os restos de grama seca na estação da estiagem

Com o matraquear dos anos o velho aposentado Marreta encheu-se de piolhos e carrapatos.

De nada adiantou tratar-lhe os ectoparasitas que infestavam-lhe o couro castanho.

Ele continuava de mal a pior.

Na minha roça ainda moram dois cavalos lindos, mãe e filho, a égua Cigana e seu podrinho de nome Theo, o mesmo nome do meu primeiro neto.

A proximidade deles com o pobre Marreta não era benéfica à saúde dos dois animais de sela. Tanto para a égua Cigana quanto ao potrinho Theo.

Daí resolvi, pelo bem e felicidade geral da nação rural, passar o Marreta adiante.

Quem me arrendou a propriedade deu-me uma ideia que recusei de pronto. O Marreta não seria vendido ao matadouro para virar salame. Ele não merecia o cruel destino, depois de tantos e tantos serviços prestados, a tantos e tantos anos galgados.

Foi quando concordei em doar o velho Marreta a alguém que apreciava cavalos, mesmo os velhos e aposentados, com eu mesmo vou estar, um dia perto.

Não quis assistir à despedida do velho cavalo de carroça. Deixei-o ir, sem ao menos um adeus, um até um dia, quem sabe quando?

Deixei o cavalo eunuco partir, rumo a tão sonhada aposentadoria, pastejando em outras plagas, sem ao menos um adeus.

Mas até hoje sinto pelo velho Marreta uma saudade imensa, da mesma intensidade e sabor da nostalgia que me acompanha sempre…

 

Deixe uma resposta