Confesso certo enfado em acordar sempre a mesma hora, nestes dias frios, deixar o apartamento contrariando o desejo de permanecer no leto, e, se não bastasse tamanho esforço, afinal conto com mais de setenta anos, ainda tenho de trabalhar após quase cinquenta anos de formado.
Se fosse depender da aposentadoria que percebo de um tal de INSS por certo não teria como pagar nem o que ganha a minha querida secretária. Mais um cadinho de um salário mínimo. É o que este ganho minguado percebe a maior parte dos jubilados. Neste país onde idosos têm de continuar na lida. Para tentar sobreviver às altas das mercadorias, que sobem quais foguetes lançados pela Rússia nesta guerra fratricida.
A cada dia é a mesma rotina. Acordar ao nascer do sol. E quando o dia se mostra cinzento, mal se enxerga a um palmo do nariz, repetir tal e qual noutros dias. Encapotar-me quando faz frio. Lavar o rosto na intenção de abrir os olhos. Assentar-me ao trono mesmo não sendo de sangue nobre. E deixar o achego do lar em direção ao consultório.
Antes as coisas eram um cadinho diferentes. Depois de atender os consultantes da parte da manhã tinha de me deslocar até um postinho de saúde por sorte a meia légua de onde estou. Era uma caminhadinha nanica. Em comparação as correrias que fazia dantes. E, nas quartas e quintas férias outra incumbência me aguardava. Deveria atender na minha especialidade os pacientes noutra parte da cidade. Desta feita tomava uma lotação. Exibia minha carteirinha de idoso e era isento de pagar passagem.
Agora me confesso um tanto cansado deste anos todos de labuta sem intervalo pra descanso.
Não tiro férias desde quando me esqueço de quando foi. A última vez creio que foi há anos passados. Foram férias miúdas. Uma semana apenas. Um período de tempo que mal me permitia descansar. Já hoje, semi aposentado, só vou parar por completo quando não mais puder caminhar pelas minhas próprias pernas, meus olhos não mais enxergarem a luz do sol, minha cabeça não mais ser capaz de identificar entre este ou aquele lugar, transformar-me num velho gagá, abengalado, carecendo de um cuidador pra me levar em cadeira de rodas pra onde desejaria ir. Aí sim. Vou me permitir tirar férias em definitivo. Pois não mais serei um velho ativo. Coisa que sempre fui. E desejo continuar a sê-lo. Até que os anjos digam amém.
Nestes tempos difíceis, onde só quem sobrevive são os fortes e os valentes, resolvi, num átimo, tirar férias de mim mesmo. Não comuniquei a decisão a ninguém. Nem mesmo ao espelho, meu confidente.
Confesso um certo enfado pela vida que tenho levado. Tenho por mim que a vida seria insustentável não fossem as mudanças. A cada dia mudo de roupa. Penteio o que restou de meus cabelos ora prum lado. Ora pro outro. Mudo de travesseiro. Para não sentir o cheiro dos anos que me contemplam. Não mudo de quarto pois no meu apartamento estou acostumado ao meu. Também não mudo de esposa pois longos anos nos unem. E quem iria suportar um velho ranzinza, agitado, que tem por hábito acordar ao cantar do galo, dormir um sono curto, e lucubrar sobe qual tema vai escrever na manhã do dia seguinte.
Decidi, por minha vontade própria, tirar férias de mim mesmo. Quem sabe se foi uma decisão acertada compete apenas e tão somente a minha pessoa. E dispenso opiniões ao contrário.
Depois de certa idade faço apenas e tão somente o que me apraz. O que não me satisfaz permito-me deixar pra trás.
Nestas férias que decidi me presentear, com meus ganhos, vai ser ir embora para Pasárgada. Lá desconheço quem seja o rei. Não vou ter a cama que escolherei. Muito menos me deitarei com a rainha já que tenho a minha. Lá vai ser o meu refúgio, meu esconderijo, um lugar maravilhoso, que só cabe na minha imaginação. Na minha Pasárgada, onde irei tirar minhas férias, não teria de pagar taxas muito menos boletos. Tudo vai estar incluído na passagem de ida sem volta.
A minha resolução de tirar férias de mim mesmo não está sujeita votos nem devotos ao contrário. Sou bastante ciente das minhas decisões.
Nestas minhas férias imaginárias gostaria de apear na lua. Lua cheia e vazia de gente. Se possível for.
Nas minhas férias penso eu estar apenas em companhia de mim mesmo. Não vou levar nenhum peso morto. Pois morto ainda não me considero.
Vou levar, na minha companhia reduzida, apenas sonhos. E nada mais. Não levarei peso extra. Basta-me conviver entre montanhas, devaneios, nunca preocupações indevidas.
Decidi-me, nesta noite passada, tirar alguns dias de férias. Confesso que irei me alijar de companhias desagradáveis. As contas irei deixar para quando me aprouver. Na volta, se quiser.
Esta minha resolução vou deixar com firma reconhecida no cartório dos aflitos.
Mais uma vez dispenso opiniões contrárias.
Quando puder tirar férias de minha pessoa, aí, nesta hora grata, irei voltar, na outra vida, se é que ela existe, vestindo outra indumentária. Quem sabe me tornarei em verdade um poeta de causas perdidas? Já que sou apenas um cronista que retrata o cotidiano com uma sensibilidade que me cavouca a alma.