Envelhecer é um fato irreversível e incontestável.
De repente não temos mais vinte anos. A infância se foi ao longe.
Adultos nos tornamos. E mais tarde, no mais tardar dos anos, velhos ficamos.
Um poeta poetou: “ai que saudades dos bailes de outrora. Das valsas bem rodadas de branca e de aurora. Das rondas de serestas em noites de lua. Dos jovens namorados aos pares na rua”.
Tenho saudades de tudo. Da minha infância passada naquela rua que mal se deixa ver na escuridão dessa manhã. As lembranças me assediam. Dos meus pais que se foram. Dos amigos da Costa Pereira que não mais estão aqui. Tenho saudade do menino que um dia fui. De cabelos lourinhos e cacheados. Que mostrava seus dentinhos de leite que já caíram. Da minha namoradinha que hoje por certo se tornou avó. Como eu já sou. Lembro-me dos folguedos de quando criança. Daquela bicicletinha de rodinhas que me fez levar um tombo. E do galo na testa e da dor que ele me causou. Recordo-me saudoso da minha primeira professora. Nos dias de agora ela deve dar aulas no céu.
Não temos como driblar a idade. Já perdemos a mocidade. Adeus aquela pele sem vincos e bem lisinha. Aquele olhar viçoso que enxergava além das entrelinhas. Pra onde foram aqueles passos largos e bem cadenciados. Aquele brilho nos olhos que perderam a cor.
A vida passa. Os anos nos atropelam. Agorinha mesmo era cinco horas da manhã. Agora os ponteiros do relógio marcam já seis.
Não há como ficar indiferente ao passar do tempo. Ele passa. As horas passarinham. Até mesmo os pássaros passam apressados em vôos rasantes. Um gavião acabou de pousar na janela do prédio defronte ao meu. Um casal de aves de rapina olha em direção ao espelho. Não sei a razão. Talvez seja para admirar suas figuras imponentes. As suas imagens refletidas.
O velho vai perdendo quase tudo. Dentes caem. O andar claudica. A audição capenga. A memória escasseia.
De repente nada mais lhe resta. E ele vive à custa de lembranças. Mal se lembra do que comeu no dia de ontem. Mas jamais se esquece do abraço que um dia recebeu dos seus netinhos queridos.
Ao velho só lhe resta rememorar velhas recordações. Do passado não se esquece. O presente lhe aquece. O futuro desconhece.
Tenho um velho amigo, Seu Rodrigo. Que de vez em quando o visito. Nos seus muitos anos de vida vive numa casinha isolada. Desde quando perdeu a mulher que mais amava. Agora vive de teimoso. Segundo dele ouvi.
Foi no sábado derradeiro que proseamos. Ele estava tomando sol numa manhã fria do mês de maio. Enrolado numa manta escura. Vestindo um pijama listrado.
Há tempos não o via. Na última vez ele me pareceu enfermo.
Fui eu quem começou a prosa.
“Rodrigo. Como vai? Tá tudo bem? Tem se cuidado? Tem tomado todos os medicamentos? Tem se alimentado bem”?
Ele me olhou com um olhar vazio, perdido no nada. E me respondeu em palavras quase inaudíveis.
“Mais ou menos. Dentro das minhas possibilidades. Não tenho com quem conversar. Vivo só entre quatro paredes. Como o que me dão. Não tenho vontade de continuar a viver. Já vivi o bastante. Não deixei descendentes. Agora só resta eu. Perdi a audição. Só escuto quando me falam em voz alta. Meus dentes já caíram. Não me acostumei a usar dentadura. Perdi o controle dos esfíncteres. Não consigo controlar a urina. Agora vivo tentando remendar as pelancas. Mas não tenho conseguido”.
Foram essas as suas últimas palavras.
Na semana entrante Seu Rodrigo conseguiu remendar suas derradeiras pelancas. E foi com elas ao céu.