Quanto tempo faz. Dias se sucedem há meses.
Há exatamente sessenta e cinco anos atrás brincava naquela rua que daqui se avista pelos fundos.
Era menino ainda. Contava com cinco anos. Um a mais do que meu primeiro neto – Theo.
Vindo de Boa Esperança, nascido ali, crescido cá, era um menino esperto. Cabelos lourinhos, clarinho como paina de algodão, primeiro neto dos Rodartes, ai que saudades do meu avô Rodartino, aquele senhor que usava sempre um terninho azul marinho, de listras brancas, um suspensório elegante, que caminhava sempre pelas ruas de nossa cidade com uma lista no bolso de trás, trazendo indefectivelmente os nomes dos devedores, um escrivão de paz, que registrava não apenas casamentos, bem como nascimentos, num cartório herdado por seu filho Rui, pai do Pedro e do Luís Carlos, o qual ainda hoje exerce o tabelionato, com rara destreza e competência. O Pedrinho se foi. A tia Dorinha seguiu seu caminho.
Naqueles tempos idos nada me atemorizava. Era valente. Até que se provasse o contrário.
Não tinha medo de cara feia. Nem das bruxas tidas malvadas. Muito menos dos fantasminhas camaradas.
Ainda me lembro, de quando na fazenda de um tio meu, que assinava Abreu, irmão do meu pai, onde passava as férias de fim de ano, durante as noites escuras, enluaradas, para fazer bonito às primas de Varginha, ia eu destemido a tal cruz da Francelina, e voltava antes da meia noite, tremendo como vara verde. E, no rabo do fogão a lenha contava minhas bravatas a uma plateia reduzida, pois todas as primas já estavam dormindo.
Continuava vida afora a demonstrar coragem. Quando algum vizinho, metido a valentão, bem maior do que eu, ameaçava-me de uma surra bem dada, refugiava-me no colo de minha mãe.
E esperava o tempo passar. Até que ele se escafedesse. Pois minha valentia terminava em poucos minutos. Quando via aquele garoto subir a rua. E sumir das minhas vistas.
Uma vez na escola outros receios me atemorizavam. Tinha medo de tirar notas baixas. O que quase nunca acontecia. Pois era aluno acima da média. Em português as minhas notas eram sempre nove e meio ou dez.
Pena que a gente cresce. De criança nos transformamos em adultos. Depois perdemos a segunda infância. Tornamo-nos velhos decrépitos. E voltamos aos velhos anos. A usar fraldões e muletas, óculos e pince-nez.
Já hoje, tempos passados, passei a ter outros medos.
Atemoriza-me um dia ficar enfermo. Ter de ser internado num leito de hospital. Passar os derradeiros dias longe das pessoas que amo tanto. Não poder expressar o que sinto. Nem mesmo identificar os circunstantes.
Mete-me medo perder a vontade de viver. Adoecer, ter de me despedir da vida sem ao menos estar preparado para isso.
Tenho receio de não poder dizer adeus. De olhar as flores do campo sem poder sentir o seu perfume.
Atemoriza-me não poder abraçar sem poder sentir o contato daquelas mãos que um dia me acarinharam. De não poder amar sem ser correspondido.
Tenho medo ainda, nestes anos que me restam, de não poder dizer: “como é bom te ver novamente. Um dia nos encontraremos em outra vida. Que seja noutro mundo bem melhor. Assim seja. Que seja feita a vontade de Deus.”
Antes nada me metia medo. Agora a coragem que tinha antes se dissipou. Foi pelos ares como as nuvens que inda agora deixaram a luz do sol entrar.