“Não fui capaz de fugir da tristeza”

Zé Macambúzio, também alcunhado de Zé Tristeza, era o exemplo típico do sujeito triste, angustiado, sempre isolado do mundo, que vivia naquele pedaço de chão, uma rocinha sossegada, vivendo como Deus queria, dizia ele.

Solteiro por convicção e simpatia. Todos os dias acordava a mesma hora de sempre. Nem bem o relógio marcava quatro horas da manhã lá se via o Zé de pé.

Era hora de levantar. O sono frugal era desprovido de sonhos.

As seis da manhã, um cadinho menos, lá ia o Zé atrás de uma dúzia de vacas leiteiras, que significavam para ele tudo que possuía. Tinha pelas vacas verdadeira veneração.

Diziam, nos arrabaldes, que Zé era o pai e o avô de duas novilhas mestiças, nascidas no ano passado, que prometiam ser vacas baldeiras, pelo tamanho do mojo que de repente se enchiam.

Zé tirava leite como forma de sustento. Era a única renda que o mantinha naquele cafundó do Judas.

Quando ia à cidade o fazia de mau humor. Mas uma vez por semana tinha de fazer uma pequena viagem para comprar mantimentos. Na roça não era possível plantar arroz. Óleo de cozinha, nem pensar. E ele mesmo cozinhava. Era comum vê-lo acender o velho fogão a lenha. Antes das seis e meias as chamas já crepitavam.

Fazia três refeições ao dia. Na janta requentava as sobras do almoço. No meio da tarde um quentinho café com broa de milho aguçava-lhe o apetite pra a derradeira refeição do dia.

Zé, apaixonado pelas vacas, principalmente por uma chamada Tristeza, cria sua, de quatro tetas perfeitas, que produzia nas duas ordenhas quase trinta litros de leite frio, só tinha um defeito a beleza. A tal Tristeza era ranzinza e tinhosa. Principalmente de bezerro novo.

A danada estava na quarta parição. Seu mojo, de tão grande que era, quando a Tristeza andava relava as tetas na terra. E era comum vê-la, logo cedo pela manhã, com o mojo arranhado pelo arame farpado. Zé tinha um trabalhão danado para curar o machucado.

Zé perdeu a conta de quantas vezes a vaca Tristeza escoiceou-lhe o traseiro. Principalmente quando o bezerro novinho sugava as suas tetas inflamadas, sugando-lhe o colostro, logo depois de nascido.

Mesmo assim Zé Tristeza, do qual nunca se viu um sorriso enfeitar-lhe o rosto, tinha pela vaca querida a maior paixão.

O tempo passou. Zé Tristeza envelheceu. A vaca Tristeza continuava viçosa como a relva molhada pelo orvalho da manhã.

Aos quase cinquenta anos, parecendo mais, Zé acordou com um estranho pressentimento. Sonhou que a linda Tristeza havia caído numa voçoroca aberta pelas últimas chuvas.

Naquele dia acordou mais triste ainda. De olhos encovados, olheiras profundas sulcavam-lhe a face, Zé se pôs de pé

Estava um dia nevoento. Mal se enxergava um palmo adiante do nariz. Fazia frio. Era fim de outono começo de inverno.

No curral todas as vacas esperavam pacienciosamente a hora de entrar naquele ambiente com cheiro de vaca e mugido de curral. Todas estavam famintas. Com os mojos vazando leite. A bezerrada mugia de fome. Só que a tal Tristeza não estava junto as outras do seu plantel.

Zé Tristeza se desesperou. Partiu em busca da amada Tristeza. Onde estaria ela? Por acaso ela teria parido? Já que estava prestes a dar cria?

Procurou por céus e pastos. Varou cercas de arame farpado. Foi até a roça de um vizinho. E nada de encontrar a tal Tristeza.

Quase o dia virando noite, já sem esperanças de encontrar a vaca de sua predileção, alertado por um colega, veio a descobrir a danada amoitada numa matinha encoberta pela cerração.

Tristeza de fato havia parido. Uma linda bezerrinha escura estava aos seus pés. Ávida por sugar o leite da mãe.

Zé, num sentimento misturado ao êxtase e alivio, tentou levar a vaca Tristeza ao curral.

Mas a safada não estava num bom dia. Para defender a cria a vaca Tristeza pôs o Zé Tristeza a correr. Nunca o Zé correu tanto. Varou cercas, desceu ladeiras, subiu um morro agudo. Mas acontece que a vaca Tristeza foi mais rápida. Acabou por atropelar o pobre Zé na subida o morro. Zé não apenas fraturou duas costelas como também quebrou o fêmur direito.

Foi quando o encontrei deitado na cama do hospital. Todo engessado, imobilizado por alguns meses, com o mesmo olhar tristonho de quando o conheci.

Para tentar animar o pobre Zé Tristeza tentei pilheriar com ele: “e aí amigo Zé? O que foi que aconteceu”?

Do outro lado veio a resposta que me convenceu: “sabe? Um dia destes tentei afugentar a tristeza. Mas ela passou por cima de mim como um trator desgovernado. Até hoje sinto por dentro uma tristeza enorme. A minha querida vaca de nome Tristeza, a que mais me agrada, acaba de falecer. Não sei o que vai ser de mim”…

Não sei o que se passa agora com o amigo Zé. Em verdade vos digo: “por mais que a gente tente afastar a tristeza ela insiste em grudar na gente. Daí a minha vontade de deixar a alegria voltar”.

Deixe uma resposta