Desfazendo planos

Zé Peleja sempre foi um homem viciado em trabalho.

Desde cedo, ainda impúbere e imberbe, ajudava ao pai numa pequena carpintaria de fundo de quintal.

Ali aprendeu o ofício de carpinteiro. Entalhava madeira com a mesma afinidade com que o pedreiro aprendeu a edificar casas.

Aos menos de quinze o pai aconselhou-o a levar mais a sério os estudos. A arte da carpintaria não o faria ir mais longe que seu professor. Zé, cujo apelido Peleja nele grudou há tempos atrás, depois de anos e anos naquela profissão ingrata decidiu assentar-se ao banco de uma escolinha perto de casa. Ali passou anos e anos sem saber qual caminho seguir. A medicina não o seduzia. Da mesma forma a engenharia o fazia ter ânsia de vômitos por não se dar bem com os números.

Prestes a concluir o segundo grau, ainda indefinido, Zé afastou-se da escola e retornou ao velho ofício.

O pai, já enfermo, sem poder exercer a arte que aprendeu com o pai, deixou ao filho a enxó que tantos calos lhe tinha dado.

Zé parecia ter-se realizado na velha arte da carpintaria. Logo montou uma oficina maior. Aprendeu a fazer móveis que eram disputados pela freguesia que cresceu a olheiras vistas.

Em poucos anos tomou fama pela cidade inteira. Os móveis feitos pela carpintaria do Zé valiam seu peso em ouro. Poder-se-ia dizer que a fábrica deu certo. E logo se expandiu pelas cercanias.

Aos quase quarenta anos o trabalhador Zé Peleja resolveu se consorciar a uma mulher da mesma idade que a sua. Dona Maria era a fruta que faltava em sua bandeja que adornava a sala de visita.

Mas, com o tempo cavalgando célere, com a idade chegando, os planos de Zé foram mudando.

Ele a esposa ganharam idade. A oficina foi, pouco a pouco, envelhecendo. Os antigos instrumentos usados no fabrico de móveis foram ficando obsoletos. Para que o negócio continuasse a crescer Zé deveria se modernizar. Mas como adquirir máquinas novas se a crise lambia tudo com sua língua ferina? Os tempos estavam difíceis. Era tempo de eleição. O país estava prestes a eleger novo comandante. E tudo ao derredor só cheirava a votos. E o povo, desarvorado, não sabia para qual lado pender.

O desemprego mostrava a cara ferina. Pais de família, sem trabalho, enchiam os bancos da praça sem saber a quem recorrer. Indústrias demitiam. Sem nenhuma perspectiva de receber de volta seus operários.

Foi neste cenário adverso que Zé Peleja se viu em dificuldades.

O único empregado da pequena carpintaria adoeceu num dia de sábado. E como fazer para entregar os pedidos já que apenas o dono tinha de fazer tudo? Era missão impossível empunhar o torno. Aparelhar as madeiras, pregar as prateleiras.

A esposa do Zé Peleja, da mesma idade do marido, era quem ajudava no serviço. Mas ela tinha de cuidar da casa. Por sorte não tiveram filhos.

O plano de saúde de repente foi interrompido. Dada à idade do casal, que de pouco passara dos cinquenta, encareceu tanto, que ficou inviável de serem pagas as prestações.

Mais um plano fracassado. Dos tantos que foram sonhados.

Eis que tanto Zé, quanto dona Maria, chegaram finalmente aos sessenta. A carpintaria foi fechada. Com uma gorda dívida na casa bancária.

A tão sonhada aposentadoria foi adiada sine die. O casal não tinha idade, nem tempo de trabalho, para conquistar o ócio tão sonhado. Eram jovens ainda. Pois, neste país onde tantos devem tanto a tão poucos, a idade de se aposentar foi espichada para além dos sessenta e cinco anos.

O casal, depois da fabriqueta falida, se viu em maus lençóis. Mal tinham para comer. Nem como para pagar o aluguel.

Dona Maria perdeu a saúde. Viu-se enferma numa segunda qualquer. Sem plano de saúde, desprovida de saúde, não teve alternativa senão recorrer ao SUS. Amargou uma longa espera para agendar a consulta. Mas, como as doenças não podem esperar, já que a consulta seria dali a dois anos, a pobre dona Maria foi levada, num taxi que acabou a gasolina numa esquina movimentada, a um hospital conveniado com o sistema único de saúde.

Ali passou tempos internada. Recebendo alta ainda pior.

De volta a casa, na companhia do marido já com idade avançada, viu novamente seus planos desfeitos.

A aposentadoria novamente foi adiada para uma dada longe daqueles dias conturbados. Apenas depois dos setenta iriam conseguir tal benefício.

A saúde do casal periclitava. Ia de mal a pior.

Sem condições de pagar um plano de saúde decente, sem o único ganha pão que possuíam, dona Maria e Zé Peleja acabaram sendo internados numa casa de idosos.

Ali passaram seus derradeiros dias. Desfazendo planos, sujeitos a toda a sorte de desenganos, tanto o ex-carpinteiro, assim como sua esposa amantíssima, são um retrato, em preto e branco, do que acontece em nosso país. Pena. Tomara dias melhores virão. Será?

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